quarta-feira, 6 de maio de 2009

Sete faces do poema

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.

Muitas vezes não nos questionamos e não refletimos acerca da própria vida a fim de encobrirmos falhas. Não meditar a respeito dos sonhos fracassados, as ações não realizadas, consiste em uma maneira de deixarmos a ferida com um ingüento que não cicatriza, mas que entorpece por um determinado tempo. Nossa pseudo-felicidade é possível por nossa comodidade.

A poesia drummondiana faz justamente o
contrário, deságua no questionamento dos mais variados obstáculos que aparecem na vida do ser humano. Através do “Poema de sete faces” Carlos Drummond de Andrade convida-nos a refletir a vida. Para Theodor Adorno “a determinação do pensamento não constitui uma reflexão exterior e estranha à arte (...) Para podermos ser instruídos esteticamente, sempre exigem também ser pensado, e o pensamento, uma vez posto em jogo pelo poema, não pode mais ser suspenso”.

Contudo, para que às vezes consigamos pensar a vida é necessário um bom entorpecente. Algo que minimize o impacto do sofrimento, tão pungente ao rememorarmos certos fatos de nossa existência. Na estrofe “Eu não devia te dizer/mas essa lua/mas esse conhaque/botam a gente comovido como o diabo”, Drummond se utiliza de dois “ópios”: a embriaguez e a ironia.

O humor desencantado, o sarcasmo, a ironia funcionam como uma espécie de mola que impulsiona a emoção reprimida. A comoção atribuída à lua e principalmente, ao conhaque, os quais fazem o eu-lírico desabafar seu pessimismo, sua angústia, sua solidão, é explicado por Pierre-Aimé Touchard no seguinte trecho: “...há algo de mais profundo, de mais ativo na embriaguez, nesse momento fugitivo da êxtase que precede o abandono total. O homem sem ter perdido o controle de si próprio, constata, ao contrário, uma espantosa hipertrofia de sua força e opõem, seja à paixão, seja aos sonhos”.

A embriaguez torna-se a chave que abre a algema de toda a repressão moral, material, sentimental. Constitui-se um modo de fuga aos arquétipos sociais vigentes. Torna-se uma saída, uma válvula de escape, um subterfúgio à realidade que se impõe e cerceia. Dioniso, deus do desregramento, da desmedida, cujo impacto é a concessão (mesmo que por um momento fugaz) à evasão da realidade. Dioniso é convocado pelo sujeito lírico a libertá-lo e revelar as suas “sete faces".

Já a realidade é ditada por Apolo. Este, o deus da compostura, do comedimento, rege a quarta estrofe contrastando com os versos anteriormente analisados. “O homem atrás do bigode/é sério, simples e forte./Quase não conversa./Tem poucos, raros amigos/o homem atrás dos óculos e do bigode”. A adjetivação “sério, simples e forte” atribui ao sujeito características moderadas. Demonstra uma outra face, predominantemente sensata e prudente. O bigode constituinte do sujeito lírico reforça a idéia de “homem sério”. O homem que “tem poucos, raros amigos” sugere certa escolha ao círculo de amizades, distinguindo-o mais uma vez pelo comedimento e sugerindo precaução aos que lhe rodeiam.”.

O bonde representa o movimento. Ele “passa cheio de pernas” e causa indagação ao coração do eu-lírico: “para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração”. O movimento significa ação e contrasta com os versos imediatamente posteriores, os quais proporcionam um caráter de estaticidade. Observemos a estrofe: “O bonde passa, cheio de pernas:/pernas brancas pretas amarelas./Para que tanta perna, meu Deus,/pergunta meu coração./Porém meus olhos/não perguntam nada”.

A perda do bonde (movimento) e da esperança constitui o “Princípio da Realidade” agindo impiedosamente. Sigmund Freud é quem teoriza sobre os dois princípios básicos que governam o aparelho mental: o Princípio do Prazer e o Princípio da Morte – ou da realidade. Eles constituem as pulsões vitais do ser humano. Alfredo Bosi, crítico literário, expõe: “na invenção do texto enfrentam-se pulsões vitais profundas que nomeamos com os termos aproximativos de desejo e medo, princípio do prazer e princípio da morte”. Ou seja, o texto incorpora e sofre as pulsões vitais humana e herda o embate, constante no indivíduo, entre o desejo e o cerceamento desses desejos.”.

A proposição de Freud é que o contínuo progresso civilizatório baseia-se na constante subjugação dos instintos humanos. É através da civilização - normas, regulamentos e sanções – que o indivíduo pauta-se quanto ao que pode ou não fazer. Herbert Marcuse interpreta a teoria freudiana da seguinte forma: “Para Freud, a livre gratificação das necessidades instintivas do homem é incompatível com a sociedade civilizada: renúncia e dilação na satisfação constituem pré-requisitos do progresso (...) A felicidade deve estar subordinada à disciplina do trabalho como ocupação integral, à disciplina da reprodução monogâmica, ao sistema estabelecido de lei e ordem”.

A religião – mesmo que não tenha o mesmo vigor que desfrutou na Idade Média – constitui-se um dos pilares da civilização. É ela quem muitas vezes convencionaliza padrões morais os quais se tornam grandes empecilhos rumo a uma realização plena. O pecado é colocado como o caminho para o inferno. Não ser virtuoso implica numa série de punições terrenas – as quais de certa forma purgam o indivíduo. A punição mais severa, porém, é passar a vida eterna sem estar na presença do divino.”.

É esse divino que abandona seu filho na hora da agonia descrito na seguinte passagem da Bíblia: “Eli, Eli, lammá sabactáni? (Deus, meu Deus, por que me abandonaste?). Na quinta estrofe do poema, Drummond usa de intertextualidade bíblica e expõe a seguir a sua limitação: “Meu Deus, por que me abandonaste/se sabia que eu não era Deus/se sabia que eu era fraco”.

O poeta questiona o abandono já que não é um Deus onipotente. A indagação, quase uma súplica, reflete a busca para o significado para a vida, e encontra uma resposta pessimista: “Mundo mundo vasto mundo,/se eu me chamasse Raimundo/seria uma rima, não uma solução./Mundo mundo vasto mundo,/mais vasto é meu coração”.

Nesta estrofe, o transbordamento, a expansão do sujeito lírico é profunda. Vivendo tensões internas, entre os extremos das pulsões vitais, Prazer e Morte agem simultaneamente. Diante da vastidão do mundo, a fuga pela troca do nome formando rima, não solucionam a imensidão de desejos em seu coração. A questão do Raimundo remete-nos ao poema “José” também de Drummond. O José sem sobrenome, sem individualidade em função disto, se vê também sem alternativa. É a síntese do homem num beco sem saída. É o “Princípio da Realidade” limitando-o, suprimindo-o através das convenções do nominalismo.

O “anjo torto” anuncia seu nascimento chamando-o pelo nome e predestinando sua vida. A figura do anjo sempre associada à luz e bondade é quebrada quando se aponta “torto” e “vive na sombra”. O anjo já traça o caminho, sem deixar alternativa quanto ao uso do livre arbítrio. Vejamos a primeira estrofe: “Quando nasci, um anjo torto/desses que vivem na sombra/disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida”.”.

"Carlos” fora destinado a ser “o mais ‘gauche’ dos ‘gauche’ ” por seu “anjo torto”. O eu-lírico vive insatisfeito, desesperado, pois se sente desajustado, desajeitado neste “Mundo mundo vasto mundo”. É um mundo cuja “A tarde talvez fosse azul/não houvesse tantos desejos”. O azul é o ideal da espiritualidade, nega a matéria, choca-se com os desejos que anseiam por ela. A tarde talvez fosse transcendental se o homem não desejasse tanto... e os empecilhos para uma realização plena são muitos. O mundo com valores que reprimem e fazem o sujeito lírico sentir-se um “Eu todo Retorcido”.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) vive as tensões do mundo pós-guerra (a primeira), dos regimes totalitários (Nazismo, fascismo, a ditadura Vargas) e vivencia na alma a Segunda Guerra Mundial. A poesia neste momento, não só a drummondiana, é a expressão de um momento conturbado. A lírica drummondiana permite a evasão do mundo tão duramente real e civilizatório, alimenta a alma, preenche lacunas e supre necessidades tantas vezes reprimida, adiada, suspensa ou cancelada pela ação atroz do cotidiano, mas ela também conduz à reflexão. Vamos a ela!


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