quarta-feira, 6 de maio de 2009

“Longa jornada noite adentro”: o trágico em ser humano

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


... o passado que o atormenta e o presente incompreendido são ingredientes que expressam os desencontros existenciais de uma humana ruína, um vidro embaçado chamado memória, uma angústia hodierna e sempre latente


Um de nossos maiores poetas nacionais, Carlos Drummond de Andrade, na quinta estrofe do “Poema de sete faces” usa de intertextualidade bíblica e expõe a limitação do eu-lírico, o sentimento de abandono, a indagação estendida a todos os homens: “Meu Deus, por que me abandonaste / se sabia que eu não era Deus / se sabia que eu era um fraco”.

Longe de ser temática exclusiva de poetas, os sentimentos de abandono e fraqueza podem não vir exclusivamente de um Deus, mas daqueles que nos geraram biologicamente ou daqueles a quem chamamos de filho. E quando este abandono e essa fraqueza não é meramente física, mas essencialmente do âmago? E quando a orfandade subsiste mesmo em presença dos pais? A fraqueza de espírito pode ser hereditária? Como traduzir as agruras de uma vida de “presentes-ausências”? A culpa, se é que existe, deve ser acusada a quem: pai, mãe, filhos?

Eugene Gladstone O’Neill parece fazer sua busca por tais respostas dentro da ficção. Esta é um dentre os vários discursos circundantes na sociedade pelos quais elaboramos nossas diversas versões acerca da realidade. Considerado um dos maiores dramaturgos dos Estados Unidos, ganhador do Nobel de Literatura e de quatro prêmios Pulitzer – o mais nobre da literatura estadunidense -, O´Neill rememora fragmentos do passado a procura dos estilhaços angustiantes das suas relações familiares em um texto que conta um “dia-símbolo” na vida dos Tyrone pai - James, mãe – Mary, e os filhos James Júnior e Edmund, na verdade, James O’Neill, Ella Quinlan, James Junior e Eugene O’Neill.

Símbolo porque ao longo da peça mostra-se que a situação trágica exposta em menos de 24 horas na obra, retrata as mesmas peripécias que todos daquela família vivenciaram muitas outras vezes em seu cotidiano. Símbolo, também, porque a obra se configura na mesma linha mestra que O’Neill produzira suas outras peças, abarcando a “rudeza de seus personagens, na devassa que ele fazia de seus pensamentos e sentimentos mais íntimos. Desde o início, O’Neill permeou suas obras de uma ironia trágica. Quase sempre, homens alimentavam-se de sonhos que não conseguiam realizar, pois os caminhos escolhidos conduziam ao fracasso”, conforme a tradutora da peça, Helena Pessoa.

O trajeto que conduz à frustração não será diferente em sua obra-prima de cunho autobiográfico: pai, mãe e filhos objetivam mudar seus destinos projetando o futuro distante daquilo que foram no passado. Porém, as relações familiares turvas e conflituosas, a cada dia ressaltam a máxima de Eugene, “o único sucesso está no fracasso”, principalmente em sua “Longa Jornada Noite Adentro”.

Esta peça de O’Neill transcende 1941, data em que fora resgatada das memórias o passado doloroso e angustiante, de eu conflituoso. A inquietude existencial leva o dramaturgo-personagem a transcorrer memórias incertas, impasses identitários, o exílio sentimental em busca de “aflições consoláveis”. O autor se funde e se confunde ao narrador; e a presença de imagens pretéritas em meio ao texto, a mescla entre a realidade e a ficção, o passado que o atormenta e o presente incompreendido são ingredientes que expressam os desencontros existenciais de uma humana ruína, um vidro embaçado chamado memória, uma angústia hodierna e sempre latente.

A dedicatória da peça remetida à esposa, Carlota, revela-nos a autobiografia de um homem que inverteu a lógica em sua “própria escrita da vida” e que em vez de divulgar fatos abonadores de conduta, façanhas extraordinárias e elogios de parentes, amigos, colegas e admiradores, retratam feridas de sua família envolta em névoa constante. Dedicada aos doze anos conjuntos ao lado de seu então porto-seguro, aquela que lhe deu ancoragem nesse mar revolto chamado vida, O’Neill despe-se de todo o rancor que poderia ter em relação a seus familiares para, a partir do retorno ao passado, fazer uma viagem de perdão as quatro personagens acometidas de tragicidade:

“Minha querida, entrego-lhe os originais desta obra de velho sofrimento, escrita com lágrimas e sangue. Dom este que parece tristemente inadequado num dia em que só se deveria comemorar a felicidade. Mas você compreenderá. Quero que seja ele uma homenagem ao seu amor e à sua ternura, que me restituíram a fé no amor, o que permitiu finalmente afrontar os meus mortos e escrever este drama... escrevê-lo com profunda piedade, compreensão e perdão para os quatro angustiados Tyrone. Esses doze anos, minha amada, foram uma jornada para a luz... para o Amor. Já conhece a minha gratidão! E o meu amor. GENE”

A “jornada para a luz” atribuída à esposa é o paradoxo do título e da trama que se urde em contínua opacidade. A casa de veraneio da família Tyrone é o cenário da “jornada do dia para dentro da noite” entre névoas diurnas e a penumbra noturna e do alvorecer. Esse embaçamento ininterrupto metaforiza as relações familiares de um lar difuso, transitório, inconstante, sem a claridade suficiente para um “olhar-sentimento” nítido, para uma agudeza aconchegante de luz que reflete o ser.

Lamartine Babo definiu a condição humana da seguinte forma: “limitado em sua natureza, mas infinito em suas aspirações, o homem é um deus tombado que tem saudades do céu”. Mas o que é esse “paraíso perdido” na fala de Babo? Por que a saudade do céu? Quando começamos a sentir necessidade de regresso ao aconchegante paraíso e constatamos que o perdemos?

Samuel Beckett, dramaturgo e teórico irlandês, ao expressar a ausência das noções de certo e errado segundo Marcel Proust, afirma que somos lançados no inferno do mundo como seres trágicos no dia em que nascemos. Nosso pecado está na essência, está na origem e não entre os acordos firmados na idade devir: “A tragédia não diz respeito à justiça dos homens. A tragédia é o relato de uma expiação, mas não a expiação insignificante de uma quebra codificada de um acordo local, redigidos por patifes para usufruto dos tolos. A figura trágica representa a expiação do pecado original, do pecado original e eterno, cometido por ele e por todos os seus socii malorum [companheiros de infortúnio], o pecado de ter nascido”.

A afirmação beckttiana corrobora com a temática da peça de O’Neill. Através dessa jornada emblemática de um dia desses “companheiros de infortúnio”, tomamos conhecimento do constante jogo de culpas, acusações e expiações em que todas as personagens se auto-punem e punem ao outro. É a tragédia compartilhada entre quatro heróis os quais expõem suas desgraças internas e externas – estas os alimentam com a certeza de que realmente são deuses tombados e seu paraíso está longe de ser restabelecido. A árdua tarefa reconhecida pelos heróis, destituídos de qualquer glória, é suportar os infernais dias de sofrimento em busca de expurgação mútua. O imenso “edifício de recordações” são revelados em “Longa Jornada Noite Adentro” de maneira trágica refratando vidas suspensas e dilaceradas pelo desespero, medo, arrependimento, angústia, fuga – sentimentos estes aliados ao amor, muitas vezes ausente, outras vezes no limite do ódio, larga e profundamente humanos.

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