sexta-feira, 31 de julho de 2009

A construção da obra Memorial de Maria Moura

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


A obra “Memorial de Maria de Moura”, de 1992, é o último livro produzido pela escritora cearense Rachel de Queiroz, a primeira mulher a ser eleita à Academia Brasileira de Letras. O romance narra, entre outras histórias, a da protagonista que dá título à obra. Órfã, Maria Moura entra em atrito com os primos pela disputa de herança de terra. Cercada pelos parentes, que pretendiam seqüestrá-la e tomar suas posses, a moça incendeia a própria casa e sai pelos fundos, fugindo com pouca bagagem e um ou outro “cabra” fiel.

De moça sozinha no mundo à líder de um bando de jagunços do sertão brasileiro, o enredo se passa em meados do século XIX, lá pelos idos de 1850. A narração do livro assemelha-se à maneira de uma telenovela. Tanto é que a obra foi adaptada para a televisão, em forma de minissérie, dois anos após sua publicação.

O livro, em primeiro momento, pode intimidar o leitor, pois possui 500 páginas. Contudo, a estrutura narrativa lembra o formato do antigo folhetim, que tinha capítulos não muito longos, impregnados de ação, conflito amoroso e tensão constante entre as personagens, pode seduzir o público. Outro fator que pode chamar a atenção do leitor é a linguagem simples e direta que busca reproduzir a fala do sertanejo, bem como retratar a cultura popular. Tal característica permite a leitura rápida.

A dedicatória do livro é dirigida, entre outros, à Elizabeth I, rainha da Inglaterra entre 1558 e 1603, que, segundo Rachel de Queiroz, serviu de inspiração para a criação de Maria Moura, pelo caráter forte e pela liderança nata.

Elizabeth, em discurso às tropas inglesas que enfrentariam a Invencível Armada Espanhola, disse: “Sei que tenho o corpo de uma mulher fraca e frágil; mas tenho também o coração e o estômago de um rei – e de um rei da Inglaterra”. E Maria Moura em um dos seus discursos, argumenta: “Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. Mulher, pra homem (...) só serve para dar faniquito. Pois, comigo eles vão ver. E, se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com meus homens, mas me retiro atirando. E deixo um estrago feio atrás de mim. (...) prá ninguém mais querer botar o pé no meu pescoço.”

Na obra são retomados alguns dos temas básicos de Rachel de Queiroz: o Nordeste problemático, a preocupação social, as figuras femininas singulares. Misturam-se na narrativa todas as forças e fraquezas, todas as virtudes e defeitos da condição humana, desde o amor ao ódio, desde o crime ao remorso.

Ao contrário da narração tradicional, temos em “Memorial de Maria Moura”, a presença de múltiplas vozes, o que caracteriza a polifonia, ou seja, a história é contada do ponto de vista de mais de uma personagem. A dinâmica entre os três narradores torna a obra envolvente, e não se pode dizer que o livro traz uma história apenas: são pelo menos três. No eixo central tem-se Maria Moura e os primos, Tonho e Irineu, com os quais ela disputa a herança. Como núcleos paralelos e secundários, têm-se o conflito do padre José Maria que abandona a batina e torna-se o Beato Romano. O terceiro núcleo foca o casal Marialva e Valentim, e a vida de ambos no circo em trabalha.

O enredo é fragmentado, quebrando a linearidade, emaranhando as ações de diversas personagens, revelando o passado delas por meio de vários “flashbacks”. As três versões acabam se juntando e entrelaçadas, formam um painel de nordestinidade que a Rachel soube trabalhar muito bem.

Sobre a criação desse livro, Rachel de Queiroz contou: “Eu estava fazendo um trabalho com minha irmã Maria Luíza sobre a seca do Nordeste. Fomos procurar livros antigos e descobrimos que a primeira grande seca registrada oficialmente aconteceu em Pernambuco em 1602. Nessa seca, uma mulher chamada Maria de Oliveira tornou-se conhecida, porque, juntamente com os filhos e uns cabras, saiu assaltando fazendas. Pois eu fiquei com essa mulher na cabeça. Uma mulher que saía com os filhos e um bando de homens assaltando fazendas era a Lampiona da época, pensei. Ao mesmo tempo, eu sempre admirei muito a Rainha Elisabeth I da Inglaterra, que morreu no início do século XVII. Li várias biografias dela, a ponto de me sentir uma espécie de amiga íntima, dessas que conhecem todos os pensamentos e sofrimentos. A certa altura, pensei: ‘Essas mulheres se parecem de algum modo’. E comecei a misturar as duas. Estava pronto o esqueleto do romance. A partir daí fui desenvolvendo os episódios.”

Na próxima edição da coluna, o enredo da “mulhê-macho”, criada por Rachel de Queiroz.

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