sexta-feira, 31 de julho de 2009

Maria Moura: “Mulhê-macho, sim, sinhô”!

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


O romance “Memorial de Maria Moura”, escrito pela cearense Rachel de Queiroz e publicado em 1992, tem três narradores e, além da protagonista que dá título à obra, possui histórias paralelas, todas passadas em meados do século XIX. Uma versão é contada pelo padre José Maria que adota o nome de Beato Romano e depois sabe-se o porquê da mudança. Versão diversa é dada por Marialva, mulher do saltimbanco Valentim, jagunço fiel à prima da esposa, Maria Moura. A outra história é contada pela moça que incendiou sua casa e virou a vaqueira mais temida da região.

No início da narrativa, fica-se conhecendo a jovem Maria Moura, aos 17 anos, que encontra a mãe morta enforcada com o cordão de uma rede, o que, num primeiro momento parece ter sido suicídio. A moça, que é órfã de pai desde a infância, passa a ser criada pelo padrasto, Liberato, que a seduz e transforma-a em amante. O padrasto tenta induzir Maria a assinar documentos que passam a ele a propriedade deixada pelo pai. Diante da recusa Liberato faz ameaças e insinua que, na verdade, a mãe de Maria não se suicidou, mas foi morta por ele. O fato se confirma no desenrolar da história.

Maria Moura aos poucos vai perdendo o medo e decide matar Liberato. Contudo, apesar de tornar-se, ao longo da narrativa, uma mulher muitas vezes fria e impiedosa, ela não havia matado ninguém até então. “Não sei bem se sou capaz de ver sangue derramado. Nunca experimentei ver de perto o sangue dos outros; e pior será se for tirado pela minha mão.”

Para vingar a morte da mãe, Maria Moura seduz um caboclo, Jardilino, e convenço-o a matar o padrasto sob a promessa de casarem-se. Sentindo-se acuada pela insistência de Jardilino em possuí-la, ela induz o feitor de sua propriedade – seu fiel criado – a matar o caboclo impertinente.

Vivendo na fazenda O Limoeiro, herança do pai, a propriedade passa a ser alvo da cobiça dos primos, Irineu e Tonho, e da mulher deste último. Após a recusa de Maria, os primos apelam à justiça e à força e o que conseguem é a resistência da prima, a qual encontra capangas para defender a casa. Depois da troca de tiros, Maria percebe que a inferioridade numérica e a falta de munição seria fatal para ela e seu grupo, então, toma uma decisão radical: incendeia sua residência enquanto foge com seus homens.

Ao deixar as terras do Limoeiro, Maria Moura e seus homens vagam pelo sertão, sem abrigo, com pouca água, passando privações, repartindo parcos alimentos que conseguiam. Acatando a liderança de Maria, o bando começa, aos poucos, a se organizar e se prover de montagem, alimentos e armas.

O grupo vive aventuras e desventuras seduzido pelo ouro, e começa a praticar roubos, vivendo desregradamente. O bando acaba se estabelecendo numa propriedade próxima à Lagoa do Socorro. Reaparece, então, o padre José Maria sob o nome de Beato Romano. Sua história vem à tona. Na última paróquia em que trabalhou, não resistiu ao pecado da carne e teve um caso com Isabel, esposa de Anacleto. Este descobre a gravidez da mulher e a mata a facadas. O padre o golpeia com um móvel, matando o assassino da amante e tornando-se ele um assassino fugitivo.

Paralelamente aos enredos de Maria Moura e Beato Romano, conhece-se a história de Marialva e Valentim. Ela é prima de Maria, mas ao contrário dos irmãos Tonho e Irineu, não se interessa pela herança da protagonista. Apaixonada pelo circense Valentim, ela foge da árdua vida impingida pelos irmãos e vai viver esse amor protegido pela prima que acolhe o casal e faz do circense seu aliado.

Maria Moura cada vez mais se torna autoconfiante, ousada e ambiciosa. Sabendo que comerciantes andavam pela região com grande soma em dinheiro para aquisição de gado, ela prepara as armas para a aventura insana. Prevendo um eventual fracasso, apronta um testamento deixando seus bens para Alexandre, filho de Marialva e Valentim, já que ela não possui herdeiro natural.

Após os preparativos para a partida, o grupo pede à Maria que o Beato Romano os acompanhe. Ela desconfia que a fé incutida pelo ex-padre nos seus capangas não seja útil em dia de conflito. Além da presença de Romano, o tom da voz de seus homens lhe pareceu um agouro. No entanto, Rachel de Queiroz deixa em aberto o destino das personagens, desafiadas sempre pelas adversidades do meio, divididas entre o crime e o remorso, e antes de tudo, sobreviventes do sertão agreste.

Em uma sociedade marcada pelo poder masculino, branco e rico, Maria Moura, a despeito de sua condição de mulher, eleva-se dentre outros inferiorizados e desafia o patriarcalismo. Mulher corajosa e destemida, através de seus homens de confiança, tocaias, moitas, justiças e injustiças, cria um mundo de regras próprias.

“Memorial de Maria Moura” é um romance que traz um retrato sem retoques de algumas relações sociais, culturais, morais, afetivas entre personagens sábias e comovidamente delineadas.

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