segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Antes dele se pôr

Geórgia Pereira, Acadêmica de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina - UEL.


“Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo”. É com esse discurso que Ricardo começa a convencer Raquel e entrar naquele velho cemitério abandonado. Ambos são personagens do conto “Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles.

Ricardo marca o encontro num lugar onde eles possam ficar a sós. Ao chegar no local, a jovem rejeita a idéia, acha o local sinistro e fica resistente, não querendo entrar no cemitério. Mas Ricardo convence que aquele encontro era importante para ele, talvez o último que eles teriam, e ela acaba cedendo ao poder de convencimento do rapaz.

Ela estava comprometida com outro homem, mais rico que Ricardo. Agora, Raquel era uma mulher que havia deixado de usar “sapatões sete léguas” e passou a usar saltos, fumando “cigarrinhos pilantras”. A jovem teria mudado seu estilo e comportamento em função do novo relacionamento e sabia que isso incomodava Ricardo, que não tinha as mesmas condições financeiras para satisfazer sua amada.

No desenrolar do conto, Lygia Fagundes Telles dá pistas da conduta de Ricardo e o que ele planeja fazer com Raquel. “Ele apanhou um pedregulho e fechou-a na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor de seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente ficou envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram” Neste trecho, a autora revela o preparo do jovem em guardar a pequena pedra que ele usaria logo depois. Ao pensar no seu ato, sua aparência se altera, ficando com feição de pessoa má.

Após entrarem no cemitério eles relembram fatos passados, do tempo que existia amor entre eles. Esse resgate permite uma maior aproximação da vítima, tocando-a pelo sentimentalismo. Conduta similar no assassino que deseja envolver a vítima. Mas no próximo diálogo ele anuncia o que seria uma morte perfeita “nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer”. Aqui Ricardo apresenta seu desejo de morte para Raquel. Apesar disso, o narrador, que é em terceira pessoa, não mostra que ela tenha percebido a dimensão de tal comentário, pois a jovem jamais julgou a crueldade que seu ex-namorado pudesse ter e se mostra, em alguns momentos, até mesmo ingênua.

As descrições feita pela autora permitem que o leitor entre no cenário apresentado. A riqueza de detalhes revela a capacidade de representar o local de forma muito próxima e favorecer a interação entre a obra e o leitor. “O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrava-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos enegrecidos como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte”. Tal descrição confirma a intenção do conto de camuflar a morte, apagar todas as marcas e torná-la lenta e silenciosa, assim como foi a de Raquel.

Durante a narrativa, Ricardo sempre se refere ao túmulo onde supostamente estaria sua família como “meus mortos”, “minha gente”. Apenas em um momento ele usa a palavra mãe, mas família nunca. Essa escolha sugere que ele possa ter assassinado mais pessoas, além de Raquel.

Dentro do jazigo, o conto atinge seu clímax. Ricardo readquire sua feição de malvado, com sorriso sarcástico, usando palavras doces e suaves, que ressaltam seu papel de vingador. O rapaz vai brincando com ela e reafirmando que ainda verá o pôr-do-sol, mas ela percebe que o encontro tinha outra intenção e o medo assola sua mente. Ele tranca a jovem no jazigo, e mesmo implorando para soltá-la, Ricardo não tem piedade alguma, pois tem a certeza que “nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado.” Ele vai embora, como se nada tivesse acontecido.

Este ato cruel é a forma doce da vingança que Ricardo encontrou para satisfazer seu orgulho, e esconder a rejeição que ele sentiu quando Raquel se envolveu em outro caso. Lygia aborda a crueldade humana de forma sutil e mostra que o homem interpreta o personagem que ele quiser, no momento que lhe for conveniente. É uma metamorfose velada que acontece a todo instante.

O conto fascina pelo modo de sua construção, com descrições ricas recriando o espaço no imaginário do leitor aliado as pequenas transformações sofridas pelos personagens que são justificadas no final da história. Mergulhar nesse universo apresentado por Lygia Fagundes Telles é ainda mais interessante quando acontece lentamente, se permitindo ser desvendado por ela e deixar que ela mostre a realidade camuflada pelas palavras.

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