quinta-feira, 9 de abril de 2009

Colcha de retalhos...

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.

Simone de Beauvoir em “Todos os homens são mortais” poetisou:"tudo que se faz acaba se desfazendo, eu sei. E a partir da hora que se nasce, começa-se a morrer. Mas entre o nascimento e a morte há a vida". A vida percorrida é história, é ficção, é memória, é a síntese do paradoxo “existir”.

Em uma das obras poéticas mais importantes da Antiguidade romana, “Metamorfoses”, o poeta latino Ovídio traduziu sentimentos que experimentamos diante da mudança, da renovação e da repetição, do nascimento e da morte das coisas e dos seres humanos. Na parte final de sua obra, lemos: “Não há coisa alguma que persista em todo o Universo. Tudo flui, e tudo só apresenta uma imagem passageira. O próprio tempo passa com um movimento contínuo, como um rio... O que foi antes já não é, o que não tinha sido é, e todo instante é uma coisa nova.

Vês a noite, próxima do fim, caminhar para o dia, e à claridade do dia suceder a escuridão da noite... Não vês as estações do ano se sucederem, imitando as idades de nossa vida? Com efeito, a primavera, quando surge, é semelhante à criança nova... a planta nova, pouco vigorosa, rebenta em brotos e enche de esperança o agricultor. Tudo floresce. O fértil campo resplandece com o colorido das flores, mas ainda falta vigor às folhas. Entra, então, a quadra mais forte e vigorosa, o verão: é a robusta mocidade, fecunda e ardente.

Chega, por sua vez, o outono: passou o fervor da mocidade, é a quadra da maturidade, o meio-termo entre o jovem e o velho; as têmporas embranquecem. Vem, depois, o tristonho inverno: é o velho trôpego, cujos cabelos ou caíram como as folhas das árvores, ou, os que restaram, estão brancos como a neve dos caminhos. Também nossos corpos mudam sempre e sem descanso... E também a natureza não descansa e, renovadora, encontra outras formas nas formas das coisas. Nada morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados... todos os seres têm sua origem noutros seres.

Existe uma ave a que os fenícios dão o nome de fênix. Não se alimenta de grãos ou ervas, mas das lágrimas do incenso e do suco da amônia. Quando completa cinco séculos de vida, constrói um ninho no alto de uma grande palmeira, feito de folhas de canela, do aromático nardo e da mirra avermelhada. Ali se acomoda e termina a vida entre perfumes. De suas cinzas, renasce uma pequena fênix, que viverá outros cinco séculos... Assim também é a natureza e tudo o que nela existe e persiste”.

Colcha de retalhos (1995), filme de Jocelyn Moorhouse, traz como protagonista uma jovem que prepara sua tese e, ao mesmo tempo, seu casamento. Vivendo na casa da avó, a garota ouve as histórias vividas por amigas da família, à medida que uma colcha de retalhos é tecida como presente de casamento. Os sentimentos são representados pelos retalhos e constroem novas perspectivas para a protagonista, a qual passa a questionar a própria vida e o conhecimento que tem acerca do mundo.

São esses retalhos – sentimentos amalgamados - que tecem nossa vida. Construímos nossa “história” reunindo pequenos “contos” vividos por nós e por outros. A vida acaba sendo uma imensa colcha de retalhos - fragmentos que formam um todo. Cada retalho acrescido na colcha da vida, revela novas facetas, desperta novos sentimentos, mostra novas veredas.

Carlos Drummond de Andrade, em genial e deliciosa inspiração, concedeu face a esse espaço de tempo que chamamos de ano: “Quem teve idéia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com um outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente”.

As poéticas palavras de Raduan Nassar, em “Lavoura Arcaica”, juntam-se também a nossa colcha de retalhos: “[...] caprichoso como uma criança, não se deve contudo retrair-se no trato do tempo, bastando que sejamos humildes e dóceis diante de sua vontade, abstendo-nos de agir quando ele exigir de nós a contemplação, e só agirmos quando ele exigir de nós a ação, que o tempo sabe ser bom, o tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto, é sempre abundante em suas entregas: amina nossas aflições, dilui a tensão dos preocupados, suspende a dor aos torturados, traz a luz aos que vivem nas trevas, o ânimo aos indiferentes, o conforto aos que se lamentam, a alegria aos homens tristes, o consolo aos desamparados, o relaxamento aos que se contorcem, a serenidade aos inquietos, a umidade às almas secas; satisfaz os apetites moderados, sacia a sede aos sedentos, a fome aos famintos, dá a seiva aos que necessitam dela, é capaz ainda de distrair a todos com seus brinquedos; em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo, não se erguendo jamais o gesto neste culto raro”.

Estamos na última fatia de 2007. Há alguns prestes a desistir de tudo. Outros exaustos, mas prontos para renovar-se. Há aqueles, no liame entre o ótimo e o excelente. Experenciamos e experimentamos as doze fatias de forma múltipla. Nem sempre felizes, nem sempre tristes, nem sempre equilibrados. O importante é chegar ao final de cada ano e não cantar “Epitáfio” (“Queria ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer”...).

Não deixe o acaso guiar a vida, mas respeite o tempo (o seu e o do outro). A literatura, a história, a natureza, e, principalmente, o ser humano – que escrevem, traduzem, interpretam, relêem, acolhem e transformam esses compostos heterogêneos e temporais -, fundamentam o trajeto entre o “nascimento e a morte”: a vida.

Como afirmou Theodore Roosevelt: “É muito melhor arriscar coisas grandiosas, alcançar triunfos e glórias, mesmo expondo-se à derrota, do que formar fila com os “pobres de espírito” que nem gozam muito, nem sofrem muito, porque vivem numa penumbra cinzenta que não conhece vitória, nem derrota”.

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