quinta-feira, 9 de abril de 2009

“Marília de Dirceu”, Tomás Antonio Gonzaga e o Arcadismo

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.

O Arcadismo, escola literária contemporânea ao movimento intelectual iluminista, veio em oposição ao Barroco decadente, no século XVIII. Nesse cânone são retomados os ideais clássicos, originando a expressão Neoclassicismo, muitas vezes tomada como sinônimo de Arcadismo.

Segundo uma lenda grega, a Arcádia era uma região rural, dominada pelo deus Pan, onde pastores e pastoras levavam suas ovelhas e se divertiam cantando, fazendo poesia e amando-se à natureza. Assim, a expressão ganhou tom de "lugar ideal" durante o Renascimento, e no século XVIII, passou a designar associações de poetas, que se reuniam a fim de propagar os ideais neoclássicos e combater o Barroco. Tanto combatiam que a Arcádia Lusitana tinha como lema "Inutilia Truncat" - "corta o inútil”. As várias expressões em latim refletem as características das obras árcades.

A obra árcade “Marília de Dirceu”, do poeta Tomás Antonio Gonzaga, constitui-se como emblema do cânone árcade, pois incorpora todas as características deste. Ela pode ser encontrada integral e gratuitamente no site da biblioteca virtual da Universidade de São Paulo http://www.bibvirt.futuro.usp.br/textos/literatura e é solicitada pelo vestibular da Universidade Estadual de Maringá.

Gonzaga nasceu na cidade do Porto, em Portugal, em agosto de 1744 e faleceu em fevereiro de 1810, na Ilha de Moçambique onde cumpriu pena de degredo. Depois de formado em Direito em seu país natal exerceu alguns cargos de natureza jurídica e em 1782 é indicado para ocupar o cargo de Ouvidor Geral na comarca de Vila Rica (Ouro Preto), na Capitania de Minas Gerais.

O poeta, já com quase quarenta anos de idade, apaixonou-se por uma adolescente de dezessete – Maria Dorotéia Joaquina de Seixas. A família da moça fazia forte oposição ao namoro. E quando tal oposição já estava praticamente vencida por Gonzaga, ele foi preso e enviado a Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, acusado de participação na Inconfidência Mineira. Passou os últimos dezessete anos de sua vida no degredo, em Moçambique, casado com a filha de um comerciante de escravos, Juliana de Sousa Mascarenhas, com quem teve um casal de filhos.

Mesmo nunca tendo se casado com Maria Dorotéia, Tomás fez desse romance o primeiro mito amoroso de nossa literatura e criou uma de nossas mais belas obras líricas, Marília de Dirceu. Nela o pastor Dirceu confessa seu amor à pastora Marília, em evidente projeção do drama vivido por ele, Tomás, e por Maria Dorotéia. O livro é dividido em três partes, cada uma subdividida em liras (várias estrofes). Escrito em épocas diferentes, sendo a primeira parte escrita antes do tempo de aprisionamento de Gonzaga em 1792, a segunda durante o tempo de prisão em 1799, e a terceira, considerada por alguns ilegítima, não tem data específica. Alguns autores creditam-na a 1812, a partir da Impressão Régia.

Na literatura árcade o poeta tem a preocupação constante em passar a busca pela clareza, simplicidade e equilíbrio. Para isso usa como pano de fundo a natureza e o bucólico (pastoril), ambos responsáveis pelo resgate dos sentimentos corroídos pelo progresso. “Marília de Dirceu” reflete o “locus amoenus”, isto é, o lugar calmo, ameno, longe do burburinho citadino, como sugere o trecho seguinte: “Acaso são estes / Os sítios formosos. / Aonde passava / Os anos gostosos? / São estes os prados, / Aonde brincava, / Enquanto passava / O gordo rebanho, / Que Alceu me deixou? / São estes os sítios? / São estes; mas eu / O mesmo não sou. / Marília, tu chamas? Espera, que eu vou.”

Nos versos “Os pastores, que habitam este monte, / respeitam o poder do meu cajado” eu-lírico mostra poder diante dos demais habitantes da região e é respeitado como tal. Nesses, “Eu vi o meu semblante numa fonte, / Dos anos inda não está cortado”, percebe-se o retorno à mitologia grega com a lembrança do mito de Narciso, que se envaidecia ao ver-se refletido na água. O eu-lírico também se olha e se admira por ainda não possuir rugas apesar de ser mais velho que a jovem Marília.

A idealização da mulher para o eu-lírico é essencial, assim as sensações imediatas são muito importantes para a conquista, pois ela ficará fascinada com palavras que a valorizem. Ele usa um excesso de metáforas ao longo de toda a estrofe posterior comparando Marília com a luz divina, o sol, a rosa, a neve, o ouro, o balsamo, o tesouro. “Os teus olhos espalham luz divina, / A quem a luz do Sol em vão se atreve: / Papoula, ou rosa delicada, e fina, / Te cobre as faces, que são cor de neve. / Os teus cabelos são uns fios d’ouro; / Teu lindo corpo bálsamos vapora. / Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora, / Para glória de Amor igual tesouro. / Graças, Marília bela, / Graças à minha Estrela!”

A estrofe “Irás a divertir-te na floresta, / Sustentada, Marília, no meu braço; / Ali descansarei a quente sesta, / Dormindo um leve sono em teu regaço: / Enquanto a luta jogam os Pastores, / E emparelhados correm nas campinas, / Toucarei teus cabelos de boninas, / Nos troncos gravarei os teus louvores. / Graças, Marília bela, / Graças à minha Estrela!” reflete a “fugere urbem” – fuga do urbano/citadino, pois o eu lírico nos mostra que é possível ter uma vida simples no campo, longe de toda complicação da cidade. A amada terá uma vida plena, feliz, aconchegante e protegida de tudo, se ficar com ele e acalenta-lo, aí vemos o “locus amoenos”.

O crítico literário Antônio Candido dedica um capítulo de seu livro “Formação da Literatura Brasileira” volume I, à produção lírica de Gonzaga e começa seus comentários afirmando ser impossível compreender tal produção se não se tem em vista que ela surge da experiência pessoal do poeta, do fato de ele ter se apaixonado por Dorotéia, e conhecido Cláudio Manuel da Costa, o árcade que trouxe ninfas para os ribeirões das Minas Gerais. Gonzaga surge como um grande poeta (um dos maiores da literatura nacional, segundo Candido) justamente num período de crise afetiva e política, e graças à convivência com o inaugurador do Arcadismo Brasileiro.

Se Cláudio, poeta importante para Gonzaga, por ser um criador de parâmetros poéticos árcades, foi um artesão da palavra que trabalhou durante anos a fio, Gonzaga expande seu talento num intervalo de tempo preciso, de 1782 a 1792, em que vivia em conturbado momento político – Inconfidência Mineira, e a paixão por Maria Dorotéia. Fica a certeza de que a Literatura brasileira, para Antônio Candido, tal qual a conhecemos hoje, seria muito mais pobre e teria tomado outros rumos se Tomás Antônio Gonzaga tivesse resistido aos “efeitos de amor” pela bela e inesquecível Marília, ou não tivesse convivido com o fundador da Arcádia Ultramarina em Vila Rica, Cláudio Manuel da Costa.

Um comentário:

Marcílio Godoi disse...

Muito bom o texto! Simples e rico.