quinta-feira, 9 de abril de 2009

“Memórias de um Sargento de Milícias” – Romântico ou Realista?

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.

Nascido no Rio de Janeiro em 1831, Manuel Antônio de Almeida teve existência breve, pois morre tragicamente em 1861, com apenas 30 anos de idade, vítima de um naufrágio na Baía de Guanabara, no Estado do Rio de Janeiro. Formou-se em Medicina, mas nunca clinicou. Para manter os estudos, traduzia folhetins franceses, escrevia crônicas e críticas para o “Correio Mercantil”. Em 1858, Almeida foi nomeado diretor da Tipografia Nacional, ocasião em que teve oportunidade de auxiliar o então tipógrafo Joaquim Maria Machado de Assis, mais pobre e desvalido que ele.

“Memórias de um Sargento de Milícias”, única obra de Almeida, foi publicada, sob anonimato, em folhetins (publicação semanal), no suplemento dominical “A Pacotilha” do jornal em que trabalhava, entre 1852 e 1853. Pouco tempo depois, o romance foi publicado em forma de livro, em dois volumes, respectivamente em 1854 e 1855, assinada com o pseudônimo “Um Brasileiro”.

O livro de Manuel Antônio inova pela linguagem realista e satírica, que não correspondia muito ao gosto da época, motivo pelo qual não teve muita aceitação e parecia mesmo que estava fadado ao esquecimento, entretanto, o tempo encarregou-se de valorizá-lo e, se não chegou ao sucesso estrondoso, continua vivo pelos anos afora.

A obra é dividida em duas partes: a primeira com vinte e três capítulos e a segunda com vinte e cinco. Inicia-se com a frase “Era no tempo do rei”, que situa a narrativa no século XIX, no Rio de Janeiro. Conta a vinda de Leonardo-Pataca para o Brasil. Ainda no navio, namora com a conterrânea Maria da Hortaliça. Daí resultou a união e “sete meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem deixar o peito”.

Passado alguns anos de convivência Leonardo-Pataca descobre que Maria da Hortaliça o traía com vários homens, dá-lhe uma surra e ela foge com um capitão de navio para Portugal. O filho Leonardo é abandonado pelos pais e o Compadre barbeiro e a Comadre parteira – padrinhos do menino – se encarregam dele.

Na primeira parte do livro o leitor acompanha o crescimento do herói; a infância rica em travessuras; a adolescência com as primeiras ilusões amorosas e as aventuras movimentadas. Essa parte encerra-se com a declaração de amor, toda desajeitada, depois de muitas tentativas e retrocessos, de Leonardo à Luisinha.

Na segunda parte do livro, o padrinho de Leonardo morre, e ele tem que voltar a viver com o pai, Leonardo- Pataca. Acaba não se dando bem com sua nova madrasta e após uma discussão, foge de casa.

Leonardo vai viver com um amigo, em uma casa bastante agitada e com muita gente. Acaba se apaixonando por Vidinha. O amor é recíproco. Porém, esse namoro não agrada aos dois primos da moça, que têm intenções de se casar com ela. Para tirar Leonardo do caminho, eles vão até o Major Vidigal, espécie de chefe de polícia e juiz da cidade, e acusam Leonardo de vadiagem. Vidigal prende Leonardo quando ele, Vidinha, e seus dois primos saem para um passeio noturno. Mas no caminho até a delegacia, ele consegue fugir. Mais tarde, Leonardo arruma um emprego na Ucharia Real. Dessa forma, Vidigal não poderia prendê-lo.

Logo o protagonista se envolve com a mulher do "toma-largura" (funcionário público humilde), é demitido e preso. Enquanto isso, José Manuel e Luisinha se casam, porém ele a trata muito mal. Vidinha, com ciúmes de Leonardo, vai tomar satisfações com a mulher do "toma-largura". Mas, o que acaba acontecendo, é que o "toma-largura" se interessa por Vidinha. Enquanto isso, por saber muito sobre a vida marginal, Leonardo vira policial. Porém, Leonardo, pelo seu gosto por travessuras e muitas vezes pelo seu bom coração, acaba protegendo e ajudando os bandidos. Vidigal o prende.

A comadre, em desespero, tenta de todas as formas a libertação de Leonardo, mas tudo em vão, até ela conhecer Maria-Regalada, velho amor de Vidigal. Juntas não só conseguem a libertação de Leonardo, como sua promoção a sargento. E isso tudo vem em boa hora, já que com a morte de José Manuel, Luisinha agora viúva, está livre para se casar com Leonardo.

Existe, entre os críticos literários, considerável discussão sobre a escola literária a que pertence “Memórias de um Sargento de Milícias”. No final do século XIX, o crítico José Veríssimo interpretou a obra como um romance pré-realista, em virtude de sua inclinação para o retrato social e da extinção do maniqueísmo das personagens (divididas em boas ou más).

Depois Mário de Andrade aproximou-a do romance picaresco espanhol (em que a personagem vive ao sabor do acaso), idéia refutada pelo crítico contemporâneo, Antonio Candido, quando analisa o livro de Almeida em “Dialética da malandragem”: “O malandro, como o pícaro, é espécie de um gênero mais amplo de aventureiro astucioso, comum a todos os folclores”, porém, ao contrário dos pícaros “cujas malandragens visam quase sempre ao proveito ou a um problema concreto, lesando freqüentemente terceiros na solução”, Leonardo encaixa-se na categoria dos malandros, pois é um misto de “boa vida” esperto e tolo ao mesmo tempo.

“Memórias de um Sargento de Milícias” rompe com a tradicional postura idealizadora do narrador romântico, em relação aos indivíduos e também à terra. O narrador transita da terceira para a primeira pessoa. Ele também assume uma cumplicidade de caráter metalingüístico com o leitor, o que significa um anúncio de procedimentos de Machado de Assis – autor do Realismo, percebido nas conversas com o leitor e nos comentários irônicos que faz a propósito do que conta.
Outro aspecto que questiona a classificação de obra do Romantismo, relaciona-se ao fato de que as temáticas de “Memórias” não se enquadram em nenhuma das racionalizações ideológicas reinantes na literatura romântica brasileira de então: indianismo, nacionalismo, grandeza, sofrimento, redenção pela dor, pompa do estilo etc.

Também não há idealização das personagens, mas observação direta e objetiva. Presença de camadas inferiores da população (barbeiros, comadres, parteiras, meirinhos, "saloias", designados pela ocupação que exercem). As personagens não são heróis nem vilões, praticam o bem e o mal, impulsionadas pelas necessidades de sobrevivência (a fome, a ascensão social) – outro aspecto do Realismo.

O “happy end” (final feliz) é apontado como uma das principais características românticas da obra. Apesar de Leonardo passar por inúmeras peripécias, supera todas as dificuldades. Triunfa o bem e o primeiro amor. O “anti-herói” quase perde sua amada, mas acaba recuperando-a – quando ela fica viúva do primeiro marido – ao final do livro. Antonio Candido é um dos críticos que defende a inserção da obra no cânone do Romantismo, embora deixe claro que “Memórias de um Sargento de Milícias” apresenta certa excentricidade em relação às demais narrativas românticas do período.

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