quinta-feira, 9 de abril de 2009

A linha tênue entre História e Literatura em “O Mez da Grippe”

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.

Entendendo que a história não recupera o real de um acontecimento passado, mas constrói um discurso sobre ele, e que este discurso é perpassado pela subjetividade daquele que o está compondo, esfacela-se a idéia de que a história é objetiva e totalizante. O recorte que se faz sobre determinado evento, as fontes utilizadas, a metodologia aplicada, os conceitos empregados, entre outros aspectos levados em conta na historiografia, explicita-se a parcialidade e a subjetividade quando da construção do discurso histórico, o que o aproxima de outras práticas discursivas.

Na condição de enunciado verbal (discurso), a história passa a ser um sistema autoconsciente de significação social tanto quanto a literatura. Nesta é possível encontrar “marcas do passado” capazes de refratar um dado contexto histórico de uma comunidade ou mesmo de uma sociedade. Abordado por diversos teóricos, o entrelaçamento entre as disciplinas encontra ressonância na teórica Sandra Pesavento a qual argumenta que a História e a Literatura “apresentam caminhos diversos, mas convergentes, na construção de uma identidade, uma vez que se apresentam como representações do mundo social ou como práticas discursivas significativas que atuam com métodos e fins diferentes”.

O cineasta, desenhista, jornalista e escritor Valêncio Xavier cria um enredo unindo diversos elementos na forma de texto-montagem mesclando as áreas de conhecimento histórico e literário. A obra “O Mez da Grippe”, com primeira edição em 1981 pela Fundação Cultural de Curitiba e reeditada pela Companhia das Letras em 1998, é construída como uma espécie de mosaico composto por elementos ficcionais e não ficcionais na forma de montagem textual.

O autor trabalha com fragmentos da realidade trazendo diversos ‘discursos alheios’ a partir de diferentes fontes: recortes de jornais, propagandas, poemas, canções, fotos, desenhos, documentos oficiais, relatos de sobreviventes. Com tal amplitude de recursos Xavier constrói um ‘discurso singular’ de fatos que se fixaram no imaginário local combinando informações de outrem no interior da obra, não extinguindo de todo a voz do autor, mas escamoteando-a, como faz, por exemplo, ao iniciar o livro com uma epígrafe lúgubre de Marquês de Sade, e que repercutirá em todo o livro como uma voz autoral e autoritária: “Vê-se um sepulcro cheio de cadáveres sobre os quais se podem observar todos os diferentes estados da dissolução, desde o instante da morte até a destruição total do indivíduo. Esta macabra execução é de cera, colorida com tanta naturalidade que a natureza não poderia ser, nem mais expressiva, nem mais verdadeira”.

A ambientação da obra é Curitiba, no Paraná, e o acontecimento histórico refratado é a gripe espanhola, que teve seu ponto culminante nesta cidade nos últimos três meses do ano de 1918. Junto a esse fato marcante e figurando fissura que também abala o cotidiano dos cidadãos curitibanos, o narrador de “O Mez da Grippe” descortina momentos da Primeira Guerra Mundial. Reelaborando os dois fatos o autor carnavaliza a História.

O termo carnavalização sugere, de chofre, a influência do carnaval na literatura e nas diferentes artes. O fenômeno do carnaval abrange, além de determinadas festividades associadas às comemorações sagradas, como o Corpus Christi, ocorridas na Idade Média e Renascimento, o período que antecede à Quaresma até hoje celebrado nas sociedades cristãs contemporâneas, e que se caracteriza pela suspensão temporária dos cerceamentos da vida cotidiana.

Para Bakhtin o carnaval constituía, concomitantemente, um conjunto de manifestações da cultura popular e um princípio de concepção ampla dessa cultura em termos de cosmovisão coerente e organizada. “Os ritos e os espetáculos carnavalescos ofereciam uma visão de mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferentes, deliberadamente não oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter se constituído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida. Essa segunda vida da cultura popular constrói-se como paródia da vida ordinária, como um mundo ao revés”.

Em “O Mez da Grippe” o cotidiano curitibano é apresentado através da carnavalização das diferentes vozes recortadas e coladas – uma refração do momento histórico caótico vivido pela população daquela cidade, inclusive a voz do narrador é escamoteada e se mostra através de fragmentos esparsos de um poema que se estende do início ao fim da obra. Ao deslocar o eixo e suas possibilidades de construção de sentidos para uma multiplicidade de autores e suas vozes, a instância autoral focaliza a imagem do híbrido no conjunto da obra.

As várias vozes, os vários registros e suas fontes textuais na ficção tornam atuais as reflexões de Barthes e Rifaterre, citados por Linda Hutcheon: "Na verdade, uma obra literária já não pode ser considerada original; se o fosse, não poderia ter sentido para seu leitor. É apenas como parte de discursos anteriores que qualquer texto obtém sentido e importância”. Tal afirmação projeta a aproximação entre os estudos da teoria literária e seus desdobramentos e a teoria da História, pois é decisiva para a abordagem de textos que problematizam os limites da linguagem, das tipologias textuais e a originalidade de obra, sobretudo no contexto considerado por alguns, e questionados por muitos, como pós-moderno.

Ao ler a obra de Valêncio Xavier, percebemos diferentes vozes presentes, os intertextos, a apropriação e a refiguração de textos. O autor recontextualiza-os, recombina-os, funde-os e o resultado é um novo texto. O processo de montagem e colagem utilizado decorre de um princípio estilístico o qual faz explodir o documento xaveriano com outras possibilidades estéticas.

O texto literário “O Mez da Grippe” questiona a rigidez do discurso factual da História, pois ao construir um mosaico interdiscursivo literário problematiza a prática discursiva histórica. Ao ficcionalizar um fato histórico, Xavier minimiza a dicotomia fato versus ficção uma vez que acentua o caráter textual/discursivo de ambos. A obra revela-se um misto de História, Literatura e teoria – uma das características apontadas como constitutiva da pós-modernidade - pois reflete seu processo constitutivo e tem o múltiplo como particularidades.

O livro pode ser lido como um mosaico carnavalesco composto de diferentes fragmentos, que reunidos, formam a imagem do conjunto. Embora possam transmitir idéias específicas, cada porção reclama o todo, como uma novela que tem sua progressão através da reunião das células dramáticas. Nesse mosaico, vozes se confrontam e reverberam num eco que reivindica a unidade.

Por meio de sua obra, Valêncio Xavier carnavaliza o conceito de História factual através do discurso literário e assim a história perde seu caráter supostamente dogmático e imparcial esfacelando-se em múltiplas perspectivas historiográficas e analíticas as quais iniciam em um mesmo ponto que a literatura – as práticas discursivas (e por vezes imagéticas) -, mas que seguem caminhos distintos.

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