O escritor António Lobo Antunes nasceu em 1942, em Lisboa, na região de Benfica, onde cresceu. Formado em Medicina e especialista em psiquiatria, foi convocado para o exército português e serviu na guerra colonial
“Os Cus de Judas” tem como tema principal a guerra da independência de Angola e os impactos desse conflito tanto do ponto de vista do colonizado como do colonizador. O autor prioriza a análise psicológica, revelando as seqüelas traumáticas originadas pela experiência que o narrador teve no campo de batalha, em que tudo era motivo de horror e de indignação, culminando com a incapacidade de adaptação para uma vida normal.
O livro é dividido em 23 capítulos, cada um nomeado com uma letra do alfabeto. O narrador se identifica como médico, fala com uma garota que ele acabou de conhecer num bar de Lisboa. O assunto principal são as memórias dele. O leitor, então, é transportado para o passado no qual o protagonista relembra o tempo em que exerceu a medicina, servindo no exército, durante 27 meses, nas linhas de combate em Angola, entre 1960 e 1970.
O período é também conturbado na terra natal do narrador, Portugal, ainda sob a ditadura de Salazar, nação que resistia ao processo de descolonização da África, ocorrido a partir da II Guerra Mundial.
Enquanto bebe, o narrador-personagem revela suas experiências. Não raramente, confunde o leitor, pela narração ininterrupta, fragmentada, muitas vezes desprovida de pontuação, o que caracteriza o fluxo de consciência. A opção do autor por esse estilo é consciente e, habilmente, construída, pois retrata de forma verossímil o estado em que o protagonista se encontra: ébrio, amargurado, desiludido.
O relato feito sobre a guerra é marcado pela crise psicológica, que se manifesta por meio de indagações filosóficas, pelo pessimismo, pelas observações irônicas, pela indignação e revolta, que vão acentuando conforme a noite avança e o narrador vai se embriagando ainda mais.
As lembranças desse médico são freqüentemente interrompidas por digressões, muitas vezes revelando o conflito existencial. A infância é retratada com um misto de tristeza e nostalgia. Em tom semelhante, o narrador descreve a casa dos pais com características tradicionais, com antepassados militares, aprendendo a valorizar as instituições como o Estado, a igreja e a família.
O discurso ideológico oco e hipócrita é assimilado em toda a sua infância, sobretudo através de suas tias idosas, que não cessam de censurá-lo: “estás magro (...) Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem”.
Chega o alistamento, e com ele, as visitas dominicais da família e a perda de identidade. Pouco depois, o temido momento do embarque para Angola, para o Cus de Judas. Momentos antes da viagem, o narrador-personagem chora no banheiro. A infância novamente evocada para suprir a ausência de amigos.
Na capital, Luanda, a miséria extrema, fruto da colonização portuguesa, desperta a revolta do narrador. Incapaz de se recuperar do trauma causado pelos horrores que presenciou, acaba sofrendo de incurável niilismo.
As reminiscências da guerra são pesarosas. A guerra associada a doenças e a excrementos, era contrastada pelas confidências sexuais do tenente com a criada, assim como as próprias escapadas com garotas sujas que viviam em barracos da região.
Além da presença de um inimigo feroz, o Movimento pela Libertação de Angola (MPLA), o narrador também se lembra da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide), formada por agentes de repressão do Estado Novo de Salazar, que, de forma cruel, obrigavam os prisioneiros a cavar a própria cova para depois os executar.
A ilusão de ser escritor é substituída pela rotina de sobrevoar os campos de batalha em busca de feridos para tratar, acompanhado por um enfermeiro desbocado que tinha aversão a sangue. Confessa à sua acompanhante que é incapaz de protestar sua revolta, pois é um fraco, inclusive não tendo participado de uma rebelião em sua tropa, ao contrário de um superior que impediu até mesmo o estupro de uma camponesa angolana por um soldado.
O primeiro romance sobre o conflito e a independência angolana é uma referência histórica quase obrigatória. A tragédia colonial é retratada do ponto de vista da impotência do ser humano diante da violência e do desrespeito aos valores sociais e morais que abalam o sentido da vida, apresentando contradições e sentimentos, emoções e angústia que revelam toda a fragilidade da alma diante de um quadro inóspito: “(...) eu perguntava ao capitão o que fizeram ao meu povo, o que fizeram de nós aqui sentados à espera nesta paisagem sem mar (...) numa terra que não nos pertence, a morrer de paludismo e balas (...) de emboscadas e de minas, lutando contra um inimigo invisível, contra os dias que não se sucedem e indefinidamente se alongam, contra a saudade, a indignação e o remorso (...)”.