sábado, 31 de janeiro de 2009

"Cavalos ou bois?" - eis a questão!

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


Um dos grandes literatos brasileiros, João Guimarães Rosa, tinha uma forma bastante peculiar de explicar a dificuldade de suas obras. Dizia o mestre que seus livros não eram feitos para cavalos os quais comem descomedidos e apressadamente, e sim para bois que engolem, regurgitam, mastigam devagar e só engolem “de vez” quando tudo está bem ruminado. A comida digerida, metodicamente, fecundará a terra.

A analogia de Rosa assemelha-se à interpretação de Antoine Compagnon sobre a leitura, esta vai em duas direções ao mesmo tempo: “Quando lemos, nossa expectativa é função do que nós já lemos – não somente no texto que lemos, mas em outros textos –, e os acontecimentos imprevistos que encontramos no decorrer de nossa leitura obrigam-nos a reformular nossas expectativas e a reinterpretar o que já lemos, tudo que já lemos até aqui neste texto e em outros”.

A reformulação de nossas expectativas e a reinterpretação do já lido é justamente o ruminar que propõe Guimarães Rosa. Ao pretender uma leitura não ingênua - baseada somente em impressões, é imperiosa a necessidade de regurgitar o repertório (o conjunto de normas sociais, históricas, culturais trazidas pelo leitor como bagagem necessária à sua leitura), mastigá-lo vagarosamente para que este venha a fecundar a terra, ou seja, avançaremos do nível primário de leitura pela revisitação de obras lidas anteriormente, estabelecendo elos entre elas e as que estão sendo lidas e, assim, ampliar a bagagem cultural, histórica e social, formando um “adubo” que fertilizará leituras posteriores em um continuum de aprimoramento.

Cada leitor se aproxima e experimenta o efeito da obra literária de forma diversa. A apropriação ampla ou apenas fragmentada da obra dependerá da capacidade maior ou menor de cada um de acercar-se dessa faceta parcial da realidade esteticamente esculpida que é a obra literária.

Há leitores análogos aos “bois”, descritos por Rosa, os quais lêem e relêem obras, e outros que seguem “manuais de malandragem literária” – como o apresentado na reportagem desta semana na revista Veja (edição 2008) em que vale tudo para se posicionar diante de qualquer obra: “Ler pela metade, saltar páginas e até opinar sobre o livro nunca lido”. Ao ensinar manobras para ser um bom fingidor o manual está colaborando com a precariedade da leitura e ajudando no enterro de obras literárias de qualidade que exigem várias leituras.

A leitura se efetiva quando o leitor se apropria do texto e faz correlações com outros textos lidos. Seu repertório ativará leituras anteriores e ampliará perspectivas futuras. Ao fingir leituras, o “cavalo” rosiano estará ingerindo comida imaginária. Não apenas deixará de expandir seu repertório, como resvalará em questões éticas já que a fraude intelectual e o engodo de si mesmo, questionam nossos valores.

Embora algumas apresentem dificuldades, toda obra e autor aspiram ser lidos e criam para isso um leitor modelo. Denominação utilizada por Umberto Eco, o leitor modelo é “uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar”. Exemplo disto é quando Guimarães Rosa afirma que seus livros são feitos para bois, aqueles que ruminam – muitas vezes angustiadamente – suas obras e de forma lenta e repetida vão assentando e reformulando expectativas e leituras.

Rosa, o médico que não chegou a exercer a profissão mas medicou a literatura brasileira, argumenta que “o livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber”. É o não dito intencional da obra que cabe ao leitor descobrir, construir, unindo leituras anteriores e edificando saberes.

Eliana Yunes, professora e teórica da literatura, argumenta que a “sonegação”, sofisticação e densidade de uma leitura podem minimizar seu “raio de ação por algum tempo, mas não a condena ao esquecimento”. Complementa ainda, que muitas “leituras e seus ‘autores’ são resgatados ao longo da história e admirados por seu olhar de lince, sua capacidade de responder antecipadamente a questões da história, com novas histórias” entrelaçando, desta forma, diversas obras e abordando temáticas anteriores ao seu tempo.

A visão de Yunes também colabora com a reflexão de Eco de que “todo o artista aspira ser lido. Não existe correspondência particular de um artista que consideramos ‘experimental’ [...] que não mostre como aquele autor, mesmo quando sabia que ia contra o horizonte de expectativas do seu próprio leitor comum e atual, aspirava a formar um futuro leitor particular, capaz de entendê-lo e de saboreá-lo, sinal de que estava orquestrando a sua obra como sistema de instruções para um Leitor Modelo que estivesse em condições de compreendê-lo, apreciá-lo e amá-lo. Não existe nenhum autor que deseje ser ilegível ou ignorável”.

Ao adentrar o universo da obra literária o leitor se depara com diversas dificuldades. Talvez a maior delas é não ter o repertório exigido, não ser o leitor modelo apto a seguir as instruções do autor. É pela memória enquanto lembrança (“evocação”) e pelo exercício da rememoração, segundo Bergson, que uma história é reconstituída, “ruminada”. O leitor acessa o seu repertório para interpretar o texto. Mas em tempos de falácia intelectual em que livros são elaborados para ensinar a se posicionar diante de obras nem manuseadas, que dirá lidas!, como instigar a leitura? Como acessar o repertório?

Alguns autores tendem a abarcar em suas obras um “vocabulário atual” – leia-se, na maioria dos casos, paupérrimo; abranger assuntos atrativos, tentando aguçar a simpatia do leitor. Contudo, pontua o sociólogo Pierre Bourdieu de que “não é a simpatia que leva à compreensão verdadeira, é a compreensão verdadeira que leva à simpatia ou, melhor, a essa espécie de amor intelectualis que baseado na renúncia ao narcisismo, acompanha a descoberta da necessidade”.

Espelhar o meu eu, meus gostos e afinidades, aquilo que já está em mim, sem atrelar à “descoberta da necessidade” não ajudará a “fecundar a terra”. O processo de ruminação exigido pela obra de arte será substituído pela simpatia do espectador/leitor da obra. O fato de não simpatizar com o modelo de escrita, com o autor, com o hermetismo da obra abortará o “amor intelectualis” e acentuará o narcisismo.

Propor desafios ao leitor pode ser uma maneira de incitar à leitura. Iniciar com textos e/ou temáticas que formam o seu repertório é tentar seduzir pelo narcisismo, mas não se deve parar por aí. Romper com os horizontes de expectativas e acrescentar novos tipos de textos são cuidados importantes para a “fecundação da terra”. Cavalos ou bois – qual o tipo de leitores que desejamos ser e formar?


Dicas de Leitura:

  1. Antoine Compagnon. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Editora UFMG.
  2. Umberto Eco. Seis passeios pelo bosque da ficção. Editora Companhia das Letras.
  3. Eliana Yunes. Pensar a leitura: complexidade. Editora Loyola.
*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 377, página 11, 18/05/2007.

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