sábado, 31 de janeiro de 2009

O “vão da porta”: abertura e restrição nas interpretações literárias

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.

O outro complementa nosso horizonte de visão
Bakhtin


Já dizia Lamartine Babo “limitado em sua natureza, infinito em suas aspirações, o homem é um deus tombado que tem saudades do céu”. Esta limitação desconcertante entranha-se nos anseios humanos de dar acabamento a si mesmo, de ter dominado a noções “quem sou e até onde posso ir”. Inquietações estas que embora encontrem ressonâncias na esfera teórica literária perpassam-na e adentram o multifacetado mundo bakhtiniano.

A imprecisão (quase descaso) que o ocidente destina ao oriente faz do russo Mikhail Bakhtin uma “certeza de dúvidas” para muitos pesquisadores e estudiosos. Autor de obras as quais foram assinadas por seus amigos e discípulos, e mais tarde reconhecidas como de sua autoria, Bakhtin tem seu trabalho considerado influente nas áreas de teoria literária, crítica literária, sociolingüística, filosofia, psicanálise, estética, antropologia, análise do discurso e semiótica. Suas discussões e teorias só foram conhecidas no ocidente, em conta-gotas na década de 70, nos anos 80 ganha relevância, atingindo grande prestígio e referencialidade póstuma nos anos 90 e adentra a atualidade de maneira vigorosa.

É do russo Mikhail Bakhtin o conceito de exotopia, o qual pode ser longamente esmiuçado aderindo diversas definições; porém, ficaremos com o proposto pelo professor Cristóvão Tezza que a define, de modo a simplificá-la: “Pelo princípio da exotopia, eu só posso me imaginar, por inteiro, sob o olhar do outro; pelo princípio dialógico, que, em certo sentido, decorre da exotopia, a minha palavra está inexoravelmente contaminada do olhar de fora, do outro que lhe dá sentido e acabamento. Em suma, no universo bakhtiniano nenhuma voz, jamais, fala sozinha. E não fala sozinha porque estamos, vamos dizer, mecanicamente influenciados pelos outros - eles lá, nós aqui, instâncias isoladas e isoláveis - mas porque a natureza da linguagem é inelutavelmente dupla”.

Ou seja, há uma limitação de horizonte quando se tenta dar “acabamento” ao eu, e que se transforma numa dependência em relação ao olhar e a voz do outro. Estamos em determinado ponto, temos um horizonte apenas e é o outro que pode nos completar, a partir do seu horizonte, integrando a visão que nos falta sobre nós mesmos. É assim também para o outro. Somos nós que damos acabamento ao outro, pois ele também sofre a própria limitação e depende da continuidade do olhar expressa através da voz alheia.

Mas por que abrangermos esse “diálogo entre horizontes díspares” para conversarmos sobre literatura? É a partir da linguagem e do olhar do outro que a literatura se forja. Em um livro temos diversos discursos – seja escrito, seja através de imagens – que trarão aos leitores, muitas vezes, um “universo de faltas”.

De fato, a literatura de qualidade, não a kitsch, a trivial-vulgar, são “dedos de prosa ou conversas poéticas” que propõem ao leitor reflexões em torno de si mesmo. Tal afirmação nos conduz ao francês Marcel Proust quando ele afirma que “Na realidade, cada leitor é, quando lê, o próprio leitor de si mesmo. A obra do escritor é somente uma espécie de instrumento de ótica que ele oferece ao leitor a fim de permitir-lhe discernir aquilo que sem o livro talvez não tivesse visto em si mesmo”. A literatura é uma das complementações de horizonte do ser humano, do leitor, e permite diversas leituras, pois apenas conduz leituras possibilitando ao leitor diferentes interpretações. Então vale tudo? Podemos interpretar um livro de infinitas formas?

Ainda que ofereça uma pluralidade de significações, há restrições ao quantificador “infinito” quando se refere a literatura. Toda boa obra tem o caráter perscrutativo o qual instiga aos leitores novas interpretações e pode ser visto como a “abertura” proposta por Umberto Eco em Obra Aberta: “embora não se entregue materialmente inacabada, exige [a obra – grifos nossos] uma resposta livre e inventiva, mesmo porque não poderá ser realmente compreendida se o intérprete não a reinventar num ato de congenialidade com o autor.[...] hoje tal consciência existe, principalmente no artista que, em lugar de sujeitar-se à “abertura” como fator inevitável, erige-a em programa produtivo e até propõe a obra de modo a promover a maior abertura possível”.

Embora materialmente compostos e encerrados, os textos literários conduzem por caminhos diversos, pois cada leitor traz uma existência particular e concreta, uma sensibilidade condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais, experiências de vida e outras situações em que o ajudarão na interpretação da obra.

Pensando nessa diversidade de percepções e ponto de vista, Umberto Eco salienta ao comentar sobre a finitude material da obra e abertura que ela propõe: “o autor produz uma forma acabada em si, desejando que a forma em questão seja compreendida e fruída tal como a produziu; todavia, no ato de reação à teia dos estímulos e de compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma situação existencial concreta (...) de modo que a compreensão da forma originária se verifica segundo uma determinada perspectiva individual”.

Pode-se dizer, então, que a obra literária (e também as obras de arte como um todo) permite diversas possibilidades interpretativas dada a característica de abertura que possui. Contudo, esses “fios condutores” traçados pelo autor dirigem interpretações evitando, ou tentando restringir, significações estapafúrdias muito além do sugerido.

A literatura é plurissignificativa, mas não permite o “viajar na maionese”, já que o autor organiza uma “seção de efeitos comunicativos de modo que cada fruidor (leitor) possa compreender”, segundo Eco. Portanto, a abertura da obra é, na verdade, um “vão de porta”, uma frincha a qual propicia flexibilidades interpretativas, mas que também impede interpretações totalmente incompatíveis com o que foi proposto pelo autor.

Os diferentes pontos de vista – tanto das personagens quanto do autor – expressos na literatura, colaboram para ampliar o horizonte de visão do leitor, mesmo tendo liberdade restrita em relação às interpretações.

Cada receptor/interpretante de literatura tem seu “campo de visão” avantajado ao ler um livro. Seu discurso será permeado pelo discurso de outrem resultando num dialogismo a partir da exotopia. Ler é ampliar horizontes e dialogar com seres humanos/escritores e suas criaturas/personagens repletos de imaginação e técnica.

Fica a dica: leia sempre e propicie a você amplidão existencial e humanização por meio da literatura. Carpe Omnium!


Dicas de Leitura:

  1. Umberto Eco. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Editora Perspectiva.
  2. Mikhail Bakhtin. Estética da criação verbal. Editora Martins Fontes.
  3. Cristovão Tezza (entre outros). Diálogos com Bakhtin. Editora UFPR.
*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 375, página 11, 04/05/2007.


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