quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Quando a Treva é Branca

Fabio Alexandre Spanhol, Mestre em Ciência da Computação pela UFSC, Bacharel em Informática pela Unioeste e cinéfilo.


Se puderes olhar, vê. Se podes ver, repara.



O arquiteto brasileiro que se tornou cineasta, Fernando Meirelles, reconhecido por suas obras marcadas pelo tom de contestação política e temas sociais como “Cidade de Deus” e “O Jardineiro Fiel”, trouxe para o cinema “Ensaio sobre a Cegueira” (Blindness, Canadá/Brasil/Japão, 2008), adaptação do romance homônimo de José Saramago (1922-*). O filme estreou no Brasil em setembro do ano passado e neste janeiro está sendo lançado em DVD.

Saramago já ganhou o Prêmio Camões, o mais notório prêmio literário da língua portuguesa e é o primeiro escritor nesse idioma a receber o Prêmio Nobel de Literatura (1998). O crítico Harold Bloom caracterizou o escritor português como “o mais talentoso romancista vivo nos dias de hoje”, sendo "o Mestre", como é evocado pelo crítico, "um dos últimos titãs de um gênero literário que se está desvanecendo".

Uma das obras mais famosas de Saramago, “Ensaio sobre a Cegueira” (1995), juntamente com os romances “Todos os Nomes” (1997), “A Caverna” (2001), “O Homem Duplicado” (2002), “Ensaio Sobre a Lucidez” (2004) e “As Intermitências da Morte” (2005) pertence à fase do autor dedicada a perscrutar de forma crítica os rumos que toma a sociedade contemporânea. A localização geográfica e o momento histórico desses romances não são mais definidos, diluindo-se em uma abordagem universal que desdenha os personagens históricos ‘oficiais’ e concentra-se nas representativas alegorias.

Sempre negando a autorização para uma adaptação cinematográfica da citada obra, Saramago retrucava que “o cinema destrói a imaginação”. Contudo, parece ter encontrado no talentoso Meirelles um artesão capaz de apresentar uma interpretação a altura do texto escrito.

O roteiro adaptado por Don McKellar, que também atua como "o Ladrão" (como já mencionado, os personagens não tem nomes, mas são alegorias), procura preservar os elementos essenciais do romance. O enredo foca uma inexplicável, inesperada e incurável epidemia de “cegueira branca” que inicia com um homem ao volante do seu carro em pleno trânsito, o “primeiro cego”, vivido por Yusuke Iseya. As pessoas com quem ele tem contato, como o “ladrão”, a esposa (Yoshino Kimura), o “médico” (Mark Ruffalo) e outros também ficam cegos. Rapidamente o mal se alastra na grande metrópole, levando o governo a isolar os vitimados para evitar o contágio dos cidadãos não ‘infectados’.

Estabelece-se uma metáfora social. Grande parte do tempo o expectador acompanha a degradação física e moral crescente do grupo inicial de pessoas que perderam a visão, sendo mantidas encarceradas, com uma leva de outros enfermos, em uma espécie “manicômio de quarentena”. Junto deles a mulher do médico (interpretada brilhantemente por Julianne Moore), a única pessoa que não ficou cega e se auto-impõe a dura missão de cuidar do marido e dos outros de sua ala.

Sem carcereiros ou qualquer controle, além do confinamento imposto e o fornecimento externo de comida racionada, o local torna-se o palco dantesco de todo tipo de extremismo que o humano pode perpetrar contra seus semelhantes quando não há ordem. Somos confrontados com excrementos e lixo que se avolumam incessantemente por todo lado, imundície corporal, racismo, mortos abandonados enterrados no pátio, estupro coletivo e tortura psicológica. Nesse aspecto, nota-se que o livro é mais grotesco, escatológico e o filme de certa forma atenua esse tom, preferindo acertadamente a sugestão ao explícito.

Aos poucos todos, menos a “mulher do médico”, estão tomados pela treva branca. As pessoas são reduzidas a seres lutando por seus instintos primários até um desmoronar efetivo de toda a estrutura social. Todos estes personagens sem nome terão testadas suas concepções de moral, dignidade e até humanidade.

A esmerada produção impressiona ora pela crueza, ora pelo intimismo, apresentada pela inspirada fotografia de César Charlone. O já habitual colaborador do diretor, em vários efeitos de superexposição, foco incerto, reflexos e dessaturação, remete a brancura da cegueira do “mar de leite” descrita no livro, criando uma atmosfera confusa e sufocante. Os interiores são sempre claustrofóbicos e opressivos. O exterior, focado no espaço da metrópole, formada por uma miscelânea de imagens de São Paulo, Osasco e Montevidéu, é sujo e escuro, polvilhado por hordas errantes de cegos.

O filme e a obra literária lembram-nos que vivemos cegados por nossa própria visão. Visão essa permeada de preconceitos (de etnia, gênero, religião, opção sexual) que nos barram em uma tola superficialidade, impedindo que vejamos a real dimensão das pessoas com as quais convivemos. Na nossa visão social deturpada já somos cegos e a “cegueira branca” clareia nossas percepções. Uma nova humanidade surge quando, na falha dos sentidos básicos, somos obrigados a confiar profundamente uns nos outros. Viver é um exercício contínuo de tolerância. Não basta olhar, tem que reparar o outro.

Dicas de Leitura:

  1. José Saramago. Ensaio Sobre a Cegueira. Editora Companhia das Letras, 1995.
  2. José Saramago. As Intermitências da Morte. Editora Companhia das Letras, 2005.
  3. José Saramago. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Editora Companhia das Letras, 1991.

Dicas de Hipermídia:

*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 462, página 7, 30/01/2009.



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