sexta-feira, 13 de março de 2009

O fotógrafo: arqueólogo das emoções

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.

O açoriano radicado em Curitiba desde 1963, Orlando Azevedo, assim definiu a sua profissão: “Em seu percurso quase sempre solitário o fotógrafo é um verdadeiro arqueólogo das emoções mais ocultas, redescobre a pátina da memória, rasga a ansiedade e a razão, recolhe os pedaços e as cicatrizes sobreviventes e lhes dá corpo num roteiro em que a memória é uma ilha à deriva feito uma lava viva. A fotografia é a ressurreição da extinção.”

Sendo um dos protagonistas, nomeando a obra com a profissão e agindo feito um, o autor Cristovão Tezza atua como um “arqueólogo das emoções mais ocultas”. Publicado em 2004, seu livro “O fotógrafo” recebeu no ano seguinte o Prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance do ano e o Prêmio Bravo! de melhor obra.

“O fotógrafo” agrega diversas leituras, assim como toda a obra literária de qualidade (no site do autor - www.cristovaotezza.com.br - tem variadas críticas e informações disponíveis que valem ser conferidas!). Podemos ler o livro de Tezza como uma exposição de retratos contextual e pessoal. Em “fotos” panorâmicas do contexto, vislumbramos uma faceta da cidade de Curitiba no início do século XXI. O enredo se passa em um dia de 2002, em meio às eleições presidenciais, nas ruas Dr. Faivre, Comendador Macedo, Praça Santos Andrade, na Universidade Federal do Paraná, no Cine Luz – região central da capital paranaense.

Já a exposição de retratos pessoais tematiza cinco protagonistas (e algumas personagens secundárias) os quais precisam, desejam e vivenciam incertezas e possibilidades futuras tentando fugas da rotina cotidiana. A “mostra fotográfica” tem um poderoso foco de luzes que revelam e ocultam verdades, reações, emoções, sentimentos e expectativas entranhadas na vaguidão dilacerada das personagens. O habitual enfadonho soa como painéis desbotados na vida daqueles seres que almejam a restauração do brilho e qualidade das fotografias-vidas.

Existe uma tensão presente durante todo o romance, seja pelo entrecruzamento de informações e percepções, pelo estilo narrativo bem arquitetado pelo autor, seja pela fragmentação da realidade, das situações vivenciadas e sentidas por cada personagem dessa teia complexa.

Há articulações paralelas e constantes entre os cinco protagonistas: O fotógrafo – cujo nome não é revelado – é contratado por um homem para fotografar secretamente uma jovem a um preço de US$ 200 o rolo de filme (sem revelar); Íris, uma mulher com idade entre 20 e 30 anos, mantém um caso com um homem casado como forma de subsistência. Ela fascina o fotógrafo, provocando a ruptura do acordo entre ele e o contratante, e deixa entrever mudanças na vida do quarentão que vive o fim do casamento; a mulher do fotógrafo, Lídia, se apaixona por um professor de literatura, Duarte; e Mara, fecha as conexões. Ela é psicanalista, casada com Duarte, e analista de Íris, a jovem que tem o paparazzo em seu encalço, o fotógrafo.

O entrecruzamento de personagens lentamente é revelado e o conjunto disperso de angústias e anseios, em vozes múltiplas – consonantes pela solidão, dissonantes pelos desejos individuais – constitui-se como uma estratégia que garante leve e permanente tensão à narrativa.

As personagens compartilham ambientes próximos, chegando a se cruzarem, mas ignorando quem é o outro. É o leitor quem tem acesso às proximidades e coincidências. Lídia, por exemplo, sai de uma sessão de cinema acompanhada por Duarte no exato instante em que Mara surpreende o fotógrafo apontando a câmera para Lídia; Mara não vê Duarte, seu marido, com a aluna apaixonada. Lídia passa por Íris na saída do elevador na universidade, mas não sabe que ela é a jovem fotografada pelo marido. O leitor tem conhecimento dos encontros e desencontros, das ínfimas ignorâncias e distâncias que impedem a descoberta dessas coincidências; e o enredo move-se em estado de suspensão constante instigando o leitor ao próximo passo.

Cada um dos 25 capítulos corresponde a uma cena fotografada em suas minúcias e de diversos ângulos. A luz narrativa incide sobre essas cenas, nomeadas de forma similar àquelas que costumam singularizar as fotos artísticas e telas em exposição: “O fotógrafo encontra Íris”; “Lídia e Duarte vão ao cinema”; “Mara caminha pela cidade”, e assim por diante.

Além das cenas em si, captadas no exato instante em que elas ocorrem e sob perspectivas das diferentes personagens, o movimento incessante e sedutor do livro acontece, também, nos pensamentos dos cinco protagonistas, leva o leitor ao conhecimento das misérias, dos anseios, do mundo particular de cada um deles. Sem aviso prévio, a narração passa de uma personagem a outra, e desta para o narrador e é retomada por outra personagem.

Essa mobilidade dos fluxos de pensamentos autônomos, mas inter-relacionados – afinal, Mara pensa em Duarte que se sente atraído por Lídia resolvida a pedir o divórcio para o fotógrafo, o qual se encanta com Íris, paciente de Mara – são jogos de luzes sobre os “retratos pessoais” fotografados por Tezza. A intercalação de pensamentos e a multiplicidade de olhares numa mesma cena redimensionam a narrativa dos acontecimentos banais. As coincidências são reveladas aos poucos e a tensão permanece a cada página.

Numa engenhosa exploração da vida cotidiana, com todas as suas pequenas alegrias e muitos sofrimentos, Cristovão Tezza devassa tudo, desde casamentos frios que prosseguem por inércia dos cônjuges, a relações entre pais e filhos destroçadas e mudas (do fotógrafo e de Íris, respectivamente). A frase “A solidão é a forma discreta do ressentimento” inicia o romance e é reiterada por várias vezes ao longo do enredo. Ela parece nomear a exposição de retratos contextual e pessoal em que o curador – organizador do evento – é também o fotógrafo, pois tece habilmente a teia de intrigas e ilumina uma a uma ressaltando os traços mais marcantes.

Observando o tédio e mau-humor do fotojornalista (antes da contratação como paparazzo), o chefe discursa para “O fotógrafo” sobre a profissão dele: “Nunca se esqueça: Fotógrafos são pessoas amadas, amáveis e simpáticas; eles têm o poder de conectar as pessoas a elas mesmas; eles são mensageiros da identidade, e todo mundo quer uma identidade; eles são espelhos de circo, no bom sentido; eles têm o poder de melhorar o mundo na parcela que mais importa: o nosso rosto. Mais, muito mais que isso: só os fotógrafos podem revelar, de fato, quem nós somos. De dentro da nossa pequena caixa mental, não nos vemos; eles é que nos vêem, e nos estendem a nossa fotografia colorida: olha você aqui!”

Assim, ao devassar o interior das personagens, Tezza faz a lavagem das emulsões, fase importante do processo de revelação da fotografia analógica. Para preservar a conservação da foto por longo prazo, torna-se necessário remover todos os vestígios dos componentes utilizados nas fases anteriores, o que se consegue mediante uma lavagem cuidadosa com água. A depuração, em “O Fotógrafo”, é obtida a partir da minuciosa elaboração narrativa dos sentimentos, insatisfações, desajustes, desgastes nas relações humanas. Como afirmou Orlando Azevedo: “Que o silêncio da imagem seja o grito que guardamos”.




*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 397, página 11, 05/10/2007.

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