A dificuldade em escrever um artigo sobre, talvez, a obra mais polêmica da literatura brasileira é considerável. Há mais de 100 anos que diversos críticos literários se propõem a analisar cada faceta do romance “Dom Casmurro”, relacionando-o à vida do autor, à sociedade contemporânea deste, ao estilo e escola literária Realista, à intertextualidade com Otelo, de William Shakespeare, e a outras tantas possibilidades interpretativas.
Publicado em 1899 em 148 capítulos (todos titulados e curtos) o romance é narrado em primeira pessoa. O Dr. Bento Santiago, familiarmente chamado Bentinho, relata a sua própria história a partir de um "flashback" (retorno, rememoração) da velhice para a infância, com o objetivo de "atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência".
Entre as “duas pontas da vida” é possível perceber transformações no narrador-personagem. A primeira fase corresponde à adolescência e se estende até a chegada do primeiro filho, e percebemos a transformação de Bentinho
Com o destino temporariamente marcado por sua mãe, Dona Glória, a qual tinha feito uma promessa em que o filho seguiria a vida sacerdotal, Bentinho - órfão de pai - cresceu em uma família típica da elite patriarcal burguesa, tendo a superproteção de Tio Cosme, prima Justina e o agregado José Dias. Entretanto o garoto não deseja ser padre e já aos quinze anos começa um relacionamento com uma vizinha – Capitolina, chamada e lembrada pelos leitores como Capitu (garota de 14 anos, de origem pobre, que vivia com os pais: Pádua e Fortunata). A convivência e as brincadeiras vão aproximando Bentinho e Capitu que de amigos passam a namorados.
Sobre o agregado José Dias cabe salientar que é uma personagem plana, caricatural, simbolizada por seu parasitismo, e configura uma amostra da condição elitista da família Santiago, pois só as famílias abastadas do Brasil imperial possuíam agregados que, de acordo com o grau de instrução, desempenhavam funções diversas, inclusive de conselheiro. Dias cuidava de Bentinho com "extremos de mãe e atenções de servo".
Os pais de Capitu posicionam-se favoravelmente ao namoro; já dona Glória, alertada pelo agregado José Dias, sente a promessa ameaçada; por isso coloca o filho Bentinho no seminário.
No seminário, Bentinho conhece Escobar, ficam amigos íntimos (os dois descobrem afinidades - ambos estão no seminário sem vocação sacerdotal). Anos depois, Escobar e Bentinho abandonam o seminário. O primeiro dedica-se ao comércio; Bentinho forma-se
Até esse momento da narrativa percebe-se a trajetória de um Bentinho que sai da condição de um garoto mimado, superprotegido e obediente, revelando-se um homem ardiloso que convence ao agregado interesseiro a tirá-lo do seminário para cursar Direito e poder, assim, realizar o sonho de casar-se com a vizinha.
O casamento entre Bento e Capitu começa a entrar em crise a partir do nascimento do filho Ezequiel que apresenta, segundo o enciumado marido, uma semelhança física com Escobar o que induz Bento a imaginar que Capitu o traiu com o seu melhor amigo. Da constatação, o agora Dr. Bento Santiago com toda a sua rigidez, intolerância e insegurança, consome-se
Os anos vão passando e Ezequiel, para o Dr. Santiago, fica cada vez mais parecido com Escobar o que dá a “certeza” de que o garoto não é seu filho. O tempo se sucede, Escobar morre afogado no mar. Ao observar no velório a reação de Capitu - "ela olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas" – Dr. Bento chega a uma comprovação pessoal: houve o adultério!
O capítulo
Ele não consegue suportar a "presença da mulher e do filho chegando até a pensar em matá-lo”. O casal passa a ter uma vida conjugal de aparência: “estão, de fato separados, porém convivem” (observe a sutil crítica machadiana à classe burguesa - relação hipócrita). É tentada uma reconciliação através de uma viagem do casal à Europa. Bento volta; Capitu e Ezequiel permanecem na Suíça. Mais tarde Capitu morre sem ter revisto o marido. Já adulto, Ezequiel retorna ao Brasil para visitar o pai que mais uma vez constata a semelhança física entre o filho e Escobar. Pouco depois Ezequiel morre no estrangeiro. Bentinho, cada vez mais Casmurro, fecha-se em sua dúvida.
O autor realista discute o ato e o modo de narrar. Ele põe em prática a metalinguagem, em que a própria narrativa trata de se auto-explicar. Logo no início, a metalinguagem se mostra, quando o personagem-narrador explica o título do livro e os motivos que o impulsionaram a escrevê-lo, expresso no capítulo I: “Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores, alguns nem tanto”.
Durante toda a narrativa de “Dom Casmurro”, a metalinguagem tem um papel fundamental, criando cumplicidade com o leitor, que ao invés de apenas ler passivamente, participa do próprio ato de narrar, ao servir de confidente do escritor, transcendendo o próprio texto.
Ao falar de “Dom Casmurro” a pergunta mais imediata e recorrente é: “Capitu traiu ou não Bentinho?” Muitos críticos e estudiosos procuram comprovar a fidelidade ou a infidelidade da moça com “olhos de ressaca”. O enigma que atrai os leitores é assim explicado por Antonio Candido: "Dentro do universo machadiano, não importa muito que a convicção de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a conseqüência é exatamente a mesma nos dois casos: imaginária ou real, ela destrói sua casa e a sua vida". É a casmurrice deste que sugere ao leitor o adultério e permite que ao tentar “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência" o leitor contemple uma das mais bem urdidas obras da literatura brasileira.
*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 387, página 11, 27/07/2007.
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