terça-feira, 3 de março de 2009

No meio do caminho tinha uma pedra: e agora, José?

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.




Nos dias atuais em que a competição, a individualidade, o pragmatismo são características valorizadas pela sociedade, a cobrança no vestibular de uma antologia poética gera diversos porquês, reclamações e pode ser a “pedra no meio do caminho” do vestibulando.

Antologia é um vocábulo de origem grega o qual significa uma coleção de trabalhos literários, geralmente poemas, agrupados por temática, autoria ou período. O escritor Carlos Drummond de Andrade escreveu durante mais de 60 anos e publicou mais de 25 livros de poesia, contos e crônicas.

"Antologia poética" é formada por poemas escolhidos pelo próprio Drummond, entre eles alguns clássicos que o popularizaram como "José", "Quadrilha", "Canção amiga" e "A máquina do mundo". Afirmou o escritor que não escolheu os textos poéticos pelo critério de qualidade nem pelas várias fases de sua carreira, antes preferiu localizar, certas características, preocupações e tendências que condicionam ou definem sua antologia como um conjunto. É possível entender tal coletânea como o espelho mais fiel de sua obra.

O livro contém nove seções, cada uma contendo material extraído de diferentes obras, disposto segundo uma ordem interna. Para cada unidade temática contemplamos fragmento de um poema visando proporcionar ao leitor pontos de partida para suas interpretações.

A primeira seção, “O Indivíduo” - o eterno conflito entre o eu e o social, é exemplificada com “Consolo na praia” em que diz: “Vamos, não chores/ A infância está perdida/ Mas a vida não se perdeu (...) O primeiro amor passou./ O segundo amor passou./ O terceiro amor passou./ Mas o coração continua.”

O desconsolo do eu-lírico pelas coisas que perdeu ou passou encontra alento na esperança do que ainda não se foi, pelo que continua. As vontades do “eu” entram em desconcerto com as do “outro” e não há re(solução), apenas o prosseguir até o próximo conflito.

Na segunda unidade, “A terra natal” - Itabira, o poema “Confidência do Itabirano” metaforiza as perdas contínuas e a nostalgia que o acompanham: “Alguns anos vivi em Itabira / Principalmente nasci em Itabira/ Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro./ Noventa por cento de ferro nas calçadas./ Oitenta por cento de ferro nas almas/ E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.(...) Tive ouro, tive gado, tive fazendas./ Hoje sou funcionário público./ Itabira é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói!”

Em “A família”, retrato de Itabira e vivências íntimas do menino, a infância é interpretada como algo mais bonito que as histórias do escritor Daniel Defoe, Robison Crusoé, como no poema “Infância”: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo./ Minha mãe ficava sentada cosendo./ Meu irmão pequeno dormia./ Eu sozinho menino entre mangueiras/ Lia histórias de Robison Crusoé,/ Comprida história que não acaba mais./ (...) E dava um suspiro...que fundo!/ Lá longe meu pai campeava/ No mato sem fim da fazenda./ E eu não sabia que minha história/ Era mais bonita que a de Robison Crusoé.”

Na quarta seção “Amigos”, homenagem aos amigos reais ou intelectuais o poema dedicado ao colega-poeta, “Mário de Andrade desce aos infernos”, exemplifica o carinho e a estima que Drummond nutria pelos amigos: “Daqui a vinte anos farei teu poema/ E te cantarei com tal suspiro/ Que as flores pasmarão, e as abelhas,/ Confundidas, esvairão seu mel./ Daqui a vinte anos: poderei/ Tanto esperar o preço da poesia?/ É preciso tirar da boca urgente/ O canto rápido, ziguezagueante, rouco,/ Feito da impureza do minuto/ E de vozes em febre, que golpeiam/ Esta viola desatinada/ No chão, no chão”

“O choque social”, unidade em que exacerba a violência humana, agrega poemas de temática rude demonstrando a crueldade e a solidão humana levadas ao extremo. “Áporo” remete a três acepções existentes só em dicionários mais antigos. O termo áporo (do grego a+poros, sem passagem, sem saída) quer dizer, pelo menos, três coisas: 1. problema insolúvel; situação sem saída; 2. uma espécie de inseto que cava a terra; e 3. uma orquídea verde. Curiosamente, nem o Aurélio nem o Houaiss, hoje, trazem esses três significados. Ambos dão somente a primeira acepção a qual enfatiza a situação sem saída, também temática de “E agora, José”. “Áporo: Um inseto cava/ Cava sem alarme/ Perfurando a terra/ Sem achar escape/ Que fazer, exausto,/ Em país bloqueado,/ Enlace de noite/ Raiz e minério?/ Eis que o labirinto/ ( oh razão, mistério)/ presto se desata:/ em verde, sozinha,/ antieuclidiana,/ uma orquídea forma-se.”

A sexta unidade temática, “O conhecimento amoroso”, o amor altruísta (como só ele poderia existir), coloca o leitor a questionar o quão doador é seu amor. Trocas, exigências e reciprocidade; nada de abdicação, de altruísmo, de doação. No poema “Sentimento do mundo”, com “apenas duas mãos”, o amor é dolorido e fatídico: “Quando os corpos passarem,/ Eu ficarei sozinho/ Desfiando a recordação/ Do sineiro, da viúva e do microscopista/ Que habitavam a barraca/ E não foram encontrados/ Ao amanhecer/ Esse amanhecer/ Mais noite que noite.”

Para falar d’"A própria poesia” – metalinguagem, sétima seção temática – expõe nos poemas a explicação sobre o fazer poético: “Aquilo que revelo/ e o mais que segue oculto/ em vítreos alçapões/ são notícias humanas,/ simples estar no mundo,/ e brincos de palavra,/ um não-estar-estando, mas de tal jeito urdidos/ o jogo e a confissão/ que nem distingo eu mesmo/ o vivido e o inventado.”

Os “Exercícios lúdicos”, penúltimo tema, trazem o jogo e as conseqüências do amar e desamar; a “Quadrilha” dos amantes que se desencontram: “João amava Teresa que amava Raimundo/ Que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili/ Que não amava ninguém./ João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,/ Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,/ Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes/ Que não tinha entrado na história.”

O estar no mundo, sem concretizar e fechar todas as possibilidades, é abarcado na última unidade - “Uma visão, ou tentativa de, a existência”. O poema “Cerâmica”, de influência cubista, permite ver nos objetos a incorporação metafórica da inutilidade da vida: “Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara./ Sem uso,/ Ela nos espia do aparador.”

Um fragmento de uma crônica do escritor português José Saramago, a respeito do poema “E agora, José”, dá-nos uma idéia da complexidade do Drummond que poetizou a crueldade, o egoísmo, a efemeridade, o ser humano em suas diversas facetas: “Afasto para o lado os meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, aviltá-los, fazer deles objetos de troça, de irrisão, de chacota – matando sem matar, sob a asa da lei ou perante sua indiferença”.

A colocação de Saramago evidencia a importância do indagar drummondiano sobre o estar no mundo, amar e desamar, enfrentar as pedras no meio do caminho, se aperceber um José sem saída, um ser humano acumulado de perdas e de esperanças. A poesia de Drummond é a expressão lírica das angústias humanas e transforma-se, assim, em espaço para investigar, analisar, questionar o homem. Sua poesia é eterna na definição que o próprio autor revelou: “eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata”.



*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 391, página 11, 24/08/2007.

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