sexta-feira, 13 de março de 2009

Watchmen: Quem está vigiando?

Fabio Alexandre Spanhol, Mestre em Ciência da Computação pela UFSC, Bacharel em Informática pela Unioeste e cinéfilo.

Em um mundo no qual super-heróis fantasiados são uma realidade, quem vigia os vigilantes?




Estreou dia 6, mundialmente nos cinemas, “Watchmen” (Watchmen, EUA, 2009) segunda incursão do diretor Zack Snyder (Madrugada dos Mortos, 300) no universo dos quadrinhos. O filme é a adaptação cinematográfica da obra homônima escrita pelo inglês Alan Moore, ilustrada por seu compatriota Dave Gibbons e publicada originalmente em 1986 como uma minissérie que dividia as 460 páginas em 12 volumes.

Moore, O "bruxo de Northampton", é “provavelmente o mais respeitado e influente escritor na história dos quadrinhos” nas palavras do escritor Gary Spencer Millidge. Dramaturgo, performático, cartunista, músico e ocultista, agregando suas qualidades profissionais e excentricidades pessoais, Moore foi um catalisador para a revolução dos quadrinhos.

Obra seminal, Watchmen inaugurou, juntamente com “O Cavaleiro das Trevas” (The Dark Night) de Frank Miller, a Era das Graphic Novels, iniciada justamente em um momento no qual os quadrinhos sufocavam-se em meio a uma crise criativa. As Graphic Novels inseriram os quadrinhos em um contexto adulto, provocando uma ruptura que os afastariam definitivamente do público exclusivamente infanto-juvenil de outrora. Muitos dos personagens tornarem-se atormentados, debatendo-se em tramas complexas permeadas por crises existenciais; imersos em mundos cada vez mais amargos e cínicos.

A quebra de paradigma foi tão intensa que os críticos literários da revista Time elegeram Watchmen para figurar na lista das 100 importantes obras literárias da língua inglesa no século XX, fato notável para uma Graphic Novel, normalmente tida como subcategoria menos relevante dentro da literatura.

Aclamado como uma das maiores obras de quadrinhos de todos os tempos, Watchmen sempre foi considerado não adaptável ao cinema, assim como já havia o sido "O Senhor dos Anéis", de J.R.R. Tolkien, até ser levado às telas com maestria por Peter Jackson. Talvez Watchmen de Znyder não seja magistral como a trilogia de Jackson, mas conseguiu o feito de manter-se fiel a obra original, impingindo as mudanças necessárias sem descartar o cerne narrativo complexo que consagrou a obra de Moore.

A trama enfoca uma realidade alternativa estendendo-se dos anos 1930 até o ano de 1985. Os EUA saíram vitoriosos da Guerra do Vietnã. Richard Nixon livrou-se do escândalo Watergate, promoveu mudanças na Constituição e reelege-se sucessivamente para a presidência. Um mundo retrô-futurista observa um relógio onipresente marcando sempre cinco para meia-noite. É o termômetro da eminente guerra nuclear com a União Soviética. Essa sociedade paranóica convive com os super-heróis do título. Homens e mulheres comuns que decidiram fantasiar-se para combater o crime.

Contudo, apesar da existência dos heróis - ou devido a ela - a sociedade não está melhor. Enredados em intrigadas políticas e guerras sujas, perseguidos e usados pela mídia que os tornou celebridades, os heróis estão desacreditados. Valendo-se do descontentamento generalizado, Nixon aprova a lei Keene e consegue banir todos os “vigilantes” para ilegalidade. Apenas o onipotente “deus em gênese” Dr. Manhattan (interpretado por Billy Crudup) e o truculento e amoral Comediante (Jeffrey Dean Morgan) são autorizados a continuar atuando, sob o comando e interesses do Estado. A maioria dos antigos vigilantes aposenta-se e muitos deles passam a enfrentar fantasmas do passado e crises da meia-idade, como Coruja (Patrick Wilson). O antes herói fantasiado Ozymandias (Mattew Goode), o homem mais inteligente do planeta, passa a atuar como líder de um império bilionário e multinacional. Enquanto todos os heróis estão aposentados, o diplomata Edward Blake é assassinado. Posteriormente descobre-se que Blake é a identidade secreta do Comediante. Inicia-se uma perseguição perpetrada pelo psicótico e violento vigilante conhecido como Rorschach (Jackie Earle Haley) em busca do assassino. Rorschach suspeita que haja alguém tramando matar todos os super-heróis. As descobertas de Rorschach revelarão uma conspiração muito maior e intrincada que suas suposições iniciais. Esse é o pano de fundo para o obsessivamente meticuloso Moore construir uma narrativa polifônica, um verdadeiro fractal semiótico carregado de tintas da Teoria do Caos para discutir megalomania, relativismo moral e a existência de Deus.

Convém ressaltar que o "bruxo de Northampton" simplesmente abomina Hollywood e raivosamente execra qualquer tentativa de ser creditado em adaptações de suas obras para o Cinema, apesar delas acontecerem: vide os interessantes "Do Inferno" (From Hell, EUA, 2001) dos irmãos Hughes e "V de Vingança” (V for Vendetta, EUA, 2006) de James McTeigue; o mediano "Constantine" (Constantine, EUA, 2005) de Francis Lawrence e o medíocre "As Aventuras da Liga Extraordinária" (The League of Extraordinary Gentlemen, EUA, 2003) de Stephen Norrington.

Devido às suas peculiaridades, Watchmen levou quase duas décadas para ser adaptado, trocando de mãos de estúdios, diretores e um sem número de versões do roteiro. Felizmente foi a visão apaixonada do roteirista David Hayter (X-Men, X-Men 2) que prevaleceu e parece ter agradado o próprio Moore. O inglês deixou isso explícito ao declarar a revista Empire que o texto de Hayter "é provavelmente a coisa mais próxima de um filme de Watchmen possível". Hayter trocou vários telefonemas com Moore durante os anos para pedir sugestões ao texto.

Ao assumir a produção, Snyder conseguiu a façanha de preservar o texto de Hayter (que assina o roteiro ao lado do estreante Alex Tse) e proteger o filme das 'idéias' comerciais dos executivos dos estúdios que financiaram o projeto.

Em sua essência, Watchmen é uma verdadeira amálgama de experimentação concebida por Alan Moore. O leitor é arrebatado por uma profusão de citações políticas, filosófico-literárias, alusões e estruturas metalingüísticas que remetem a própria linguagem dos quadrinhos desconstruindo os arquétipos do super-herói. A obra cinematográfica da mesma forma não é um ‘filme de super-heróis’, mas um ‘filme sobre super-heróis’ com outras pretensões. Certamente o filme pode ser pouco palatável para os não-iniciados e até mesmo obrigue a vê-lo mais de uma vez para estabelecer no espectador uma compreensão completa. Em um mundo no qual super-heróis fantasiados são reais, quem vigia os vigilantes?

PS:O epílogo do cinema difere um pouco do desfecho da obra original, mas ainda mantém toda a carga emocional e ideológica desta.


Dicas de Leitura:

  • Alan MOORE; David GIBBONS. Watchmen - Ed. Especial. Editora Panini Brasil, 2009.
  • ALAN MOORE: Portrait of an extraordinary gentleman. Leigh-on-Sea: Abiogenesis Press, 2003.

Dicas de Hipermídia:

*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 468, página 7, 13/03/2009.


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