terça-feira, 3 de março de 2009

A “coisificação” do homem em “São Bernando”, de Graciliano Ramos

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


“Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos. Os currais que se escoram uns aos outros, lá embaixo, tinham lâmpadas elétricas. E os bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamento da lei de Deus.”

Com essa linguagem ríspida e reduzida ao essencial, a obra “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, publicada em 1934, explicita a relação capitalista a qual domina por completo a vida do protagonista Paulo Honório.

O trecho acima é a definição dos trabalhadores dada pelo patrão. O substantivo “bichos” caracteriza, metaforicamente, os funcionários da fazenda São Bernardo, os quais podem ser “domésticos” ou “do mato” estabelecendo uma diferença no grau de civilidade. Luis Padilha, herdeiro falido da fazenda que agora pertence a Paulo, é “doméstico” por ser educado, civilizado. Casimiro Lopes, capanga de Paulo, não tem educação nem refinamento, segundo o chefe, por isso é considerado “bicho do mato”.

Os demais funcionários não chegam sequer a serem identificados. A metáfora escolhida para resumir sua condição ajuda a compreender como as questões sociais aparecem nesse romance de Graciliano Ramos: são “bois mansos”. O narrador-personagem, Paulo Honório, faz uma particularização deles: os “bichos” são os trabalhadores de modo geral e passam por “bois” aqueles que trabalham nos campos. As casas dos “bichos” são “currais” e seus filhos, os “bezerrinhos”.

Essa agudeza semântica em que muitas palavras são metáforas da relação de posse do homem pelo próprio homem, possibilita à obra “São Bernardo” uma leitura dentro do que o filósofo da Escola de Frankfurt, George Lukács, denominou “coisificação”.

Entende-se por “coisificação” um processo no qual cada um dos elementos da vida social perde seu valor essencial e passa a ser avaliado apenas como “coisa”, ou seja, quanto à sua utilidade, quanto à sua capacidade de satisfazer certos interesses. Lukács concebe o conceito de coisificação como produto de uma economia de mercado, em que tudo é medido a partir de seu valor de uso e de seu valor de troca. As pessoas se “coisificam”, pois precisam-se oferecer como produto num mercado que está em busca da melhor oferta. Essa “coisificação” desumaniza o homem e seu meio social, levando a uma sociedade de trocas despida de sentido e sentimento humanista. O homem é uma engrenagem da máquina capitalista como mostrou Charles Chaplin no filme “Tempos Modernos”.

Ao iniciar a narrativa em primeira pessoa, Paulo Honório pretende fazer, como no sistema capitalista, uma “divisão de trabalho”. Distribui a cada “amigo”, de acordo com a sua especialidade, uma função na construção do romance. Entretanto, tal procedimento não dá certo: “João Nogueira queria o romance em língua de Camões, com períodos formados de trás para diante. Calculem!”; “Padre Silvestre recebeu-me friamente (...) Está direito: cada qual tem as suas manias.”; “ (...) concentrei as minhas esperanças em Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, periodista de boa índole e que escreve o que lhe mandam (...) O resultado foi um desastre. Quinze dias depois do nosso primeiro encontro, o redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos datilografados, tão cheios de besteiras que me zanguei: – Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma! Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos da sua pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode escrever como fala. – Não pode? perguntei com assombro. E por quê? Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode.”

A relação interpessoal do narrador é exemplificada neste trecho do primeiro capítulo do romance. Ele “mandanas pessoas, sumariamente, como faz com o Gondim, a quem considera “uma espécie de folha de papel destinada a receber idéias confusas”. Também sumariamente, rechaça os participantes do projeto de escrever o romance, ora criticando (a João Nogueira) ora aceitando a recusa (Padre Silvestre), ora xingando (a Gondim).

Valendo-se de seus próprios recursos e sem indagar as vantagens materiais que o livro lhe traria, ou seja, mudando de atitude em relação à “divisão do trabalho” e ao retorno financeiro no início pretendido, Paulo Honório começa a escrever, narrando sua trajetória que vai de guia de cego a proprietário rural.

O protagonista do romance é órfão, criado por uma negra analfabeta, luta – com trabalho lícito e esforços ilícitos – para vencer na vida. Após ter conquistado e perdido fortuna e prestígio, descobre-se solitário e infeliz. Decide, então, fazer um balanço de sua vida. Nessa construção narrativa surgem os traços mais marcantes de uma personalidade “moldada” pelo contexto socioeconômico do qual fazia parte.

Ponto central do enredo e do processo de auto-análise do narrador, está o casamento com Madalena, uma professora de origem pobre. A convivência revela as diferenças entre os dois. Enquanto Paulo via nos empregados apenas um meio de obter lucro, não se preocupando, portanto, com a educação ou com a saúde deles, Madalena sentia a necessidade de humanizá-los. Essas divergências minam cada vez mais a estabilidade do casamento, reagravada pela desconfiança de Paulo, o qual se imagina traído por Madalena. A mulher, vítima do ciúme brutal do marido, suicida-se.

Paulo não consegue fazer de Madalena sua propriedade, contudo, é a perseverança humanística da esposa que faz o protagonista repensar sua vida escrevendo o livro. Na verdade, a partir do casamento, como observou o crítico Antonio Candido, "instalam-se na sua vida (de Paulo Honório) os fermentos de negação do instinto de propriedade, cujo desenvolvimento constitui o drama do livro". Ele sente uma estranha necessidade de escrever, numa tentativa de compreender, pelas palavras, não só os fatos de sua vida como também a esposa, suas atitudes e seu modo de ver o mundo.

O social e o psicológico se fundem em “São Bernardo” para criar uma obra de profunda análise das relações humanas. Diante de uma das muitas interpretações possíveis, a obra sugere que o homem cria para si estruturas sociais que acabam por gerar problemas graves, aprisionando a si mesmo dentro dessas estruturas.

Observa-se que o romance aborda o embate entre Paulo Honório e as demais personagens preconizando elementos estruturais e orgânicos que acabam por simbolizar o próprio sistema capitalista. Esse capitalismo emergente traz à tona problemas de relacionamento social, claramente vivenciados por Paulo Honório, mesmo sem perceber de imediato, o que só o faz quando da morte da esposa. Um desses problemas, preponderante na história é a "coisificação" a que, em níveis diferentes, submetem-se Paulo Honório, Madalena e os empregados com evidente degradação dos valores humanos.

Por meio de personagens como o protagonista de “São Bernardo”, Graciliano Ramos conduz seus leitores a uma análise progressiva da alma humana. Destituído de propriedades e prestígio, Paulo Honório é um “explorador feroz”, um “animal capitalista” sem capital. Suprema ironia para alguém como ele, que via as pessoas que lhe serviam como “bichos”, como “coisas” úteis. Quando escreve sua história ele próprio não passa de uma “coisa” sem utilidade, alguém perdido e sem valor de troca.



*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 395, página 11, 21/09/2007.

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