terça-feira, 3 de março de 2009

O Burrinho Pedrês, um burrinho roseano

Deisily de Quadros, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Graduada em Letras pela UFPR.





João Guimarães Rosa é um autor destaque do Modernismo brasileiro. Dentre outras razões destaca-se devido ao seu trabalho tão particular com a escrita, à renovação e transformação que faz do uso da língua. Em suas obras, convivem harmoniosamente termos coloquiais típicos do sertão mineiro, palavras que já estão em desuso, neologismos, aliterações e onomatopéias.

E é por meio desse trabalho com a linguagem que Guimarães reconstrói o sertão que, na verdade, é a imagem do mundo, e o sertanejo, que é, por sua vez, o retrato do próprio ser humano, que convive com problemas de ordem universal e eterna.

São essas imagens que remetem ao universal que estão presentes em “O burrinho pedrês”, a primeira das nove histórias do livro Sagarana (1946), cujo título é marcado pelo hibridismo – formação de palavras com elementos tomados a diversas línguas – característica tipicamente roseana: saga é radical de origem germânica e significa “canto heróico”, “lenda”, e rana, palavra indígena, quer dizer “espécie de” ou “maneira de”; temos, então, uma “espécie de lenda/de canto heróico”.

“O burrinho pedrês”, como as demais histórias de Sagarana, traz no início uma epígrafe, citada no corpo deste artigo, que condensa sugestivamente a narrativa e é tomada da tradição mineira, de uma cantiga do sertão. A palavra macho refere-se ao protagonista da história, o burrinho pedrês; carregado de algodão simboliza a carga que o ser humano leva no decorrer da vida; perguntei p’ra donde ia refere-se a costumeira indagação realizada pelos homens acerca da existência, os porquês da vida; e p’ra rodar no mutirão é uma metáfora do coletivo, da solidariedade humana.

A história toda acontece num dia de trabalho da Fazenda da Tampa, no centro de Minas. Major Saulo e seus homens se preparam para levar a boiada que seria vendida quando Sete-de-Ouros, um burrinho já idoso, aparece e é escolhido para servir de montaria neste transporte de gado, já que a maioria dos cavalos havia fugido no decorrer da noite.

Durante os preparativos para a viagem, sabe-se que um dos vaqueiros, Silvino, está com ódio de Badu, por este estar namorando a moça de quem gosta. Assim, tudo leva a crer que Silvino vai vingar-se de Badu. Major Saulo, sendo alertado dos boatos sobre a vingança, designa Francolim para ficar atento aos movimentos de Silvino.

No entanto, não há tempo para a vingança. Na volta para a Fazenda da Tampa após a entrega da boiada vendida, durante a noite, os cavalos empacaram, pressentindo o perigo. O Córrego da Fome – nome sugestivo, como todos os nomes nas obras roseanas – havia transbordado devido à chuva e todos resolveram esperar por Badu e o burrinho Sete-de-Ouros. Se o burro seguisse adiante era sinal de que não havia perigo, já que “os burros não entram em lugar de onde não podem sair”.

Sete-de-Ouros foi adiante e os cavalos seguiram-no. Oito vaqueiros - Benevides, Silvino, Leofredo, Raymundão, Sinoca, Zé Grande, Tote e Sebastião - e os seus cavalos se afogaram. Salvaram-se apenas Badu, que acabou montando Sete-de-Ouros porque, bêbado, foi o último a sair do bar no momento de iniciar a viagem de volta, e Francolim, que se deixou levar pelo córrego pendurado no rabo do burrinho. Já em terra firme, Sete-de-Ouros livrou-se de Francolim e seguiu para a fazenda. Ali, soltaram-no do vaqueiro Badu, que dormia, e dos arreios.

O conto é narrado em terceira pessoa e o narrador é onisciente – não participa da história – o que acentua na mesma a dimensão mítica, o encantamento. É o contador de histórias que ressurge, o homem coletivo, o aedo das narrativas gregas.

O conto já é iniciado com o uso da palavra coletiva e anônima: “Era um burrinho pedrês..”. Esta é a narrativa das fábulas, das lendas, cuja linguagem é atemporal, não datada, seja pela mescla de precisão e imprecisão documental no registro do espaço – “Era um burrinho pedrês vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão” – seja pela noção do tempo lógico que é muitas vezes substituída por uma atmosfera surrealista, quando os animais mudam de forma de acordo com as transformações da natureza – “os bois pareciam crescer no nevoeiro, virando sombras esguias de répteis desdebuxados, com o esguicho das bátegas espirrando dos costados” – ou ainda quando passado e presente se confundem nas histórias contadas pelos vaqueiros, nas quais perpassam sentimentos de amor, ódio e desespero.

A dimensão antropomórfica (semelhante à forma humana) que é dada à personagem principal (o burrinho pedrês) o qual vive imerso em seus pensamentos, ao touro Culundu, que mata o menino Vadico e, depois se arrepende, entrega-se ao desespero e é encontrado morto no curral, e também às cantigas da tradição popular inseridas no fluxo narrativo, as quais passam de geração a geração, dão ao conto o aspecto de atemporalidade e situam a narrativa no limite entre o real e o mágico.

A trama desse conto, como as demais narrativas roseanas, é aparentemente simples. “O burrinho pedrês”é, segundo a carta de Rosa enviada ao crítico literário João Condé, uma “peça não profana, mas sugerida por um acontecimento real, passado em minha terra, há muitos anos: o afogamento de um grupo de vaqueiros, num córrego cheio”. Ou seja, é a história da condução de uma boiada, num dia de chuva forte, a algum ponto indefinido do sertão, sob a tensão de um plano ameaçador de ciúme e crime. Porém, nos textos roseanos, há sempre um trabalho árduo com a palavra, um enredar e desenredar de histórias. O foco da narrativa está centrado em um burrinho, o Sete-de-Ouros, que é uma figura sábia e intensamente humana, que aparece pouco na ação, mas acaba dominando o universo da narrativa.

O burrinho pedrês, “miúdo e resignado”, “muito idoso”, “decrépito”, “em constante semi-sono”, tem o nome recoberto pela magia de um número místico – o sete – e pela força simbólica do ouro, representando a superação e a transcendência. É também uma metáfora da velhice – o burrinho, com sua vasta experiência conquistada ao longo dos anos, sabe se orientar onde cavalos de boa montaria esmorecem. E o animal, transformado em herói, propicia um questionamento acerca do saber dos homens, pondo em xeque a onipotência presunçosa destes, que julgam controlar o próprio destino, ignorando as inesperadas situações com as quais podem deparar-se.

Há ainda a metáfora da travessia do rio, um momento crucial, que é uma imagem freqüente na obra roseana. Representa a superação de obstáculos, a possibilidade de os fracos tornarem-se fortes, o caminhar de um estado a outro. Sete-de-Ouros, o velho burrinho filósofo de quem todos faziam pouco caso por se tratar de uma montaria de aparência velhaca, pôde regressar à sombra e ao capim da fazenda porque, ao lutar contra o destino, valeu-se da astúcia para escapar de uma tragédia, fazendo a travessia, travessia essa que deve permear também a leitura realizada pelo “ledor” de Rosa, para que vários sentidos do texto em questão sejam estabelecidos.



*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 389, página 11, 10/08/2007.

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